Zefirelli, San Zeno e o vestido Capodanno – na Arena di Verona, em 2 atos – Parte II

Saiu desesperada pelas ruas, empreendedora, tentando enxergar qualquer oportunidade. E foram muitas tentativas: ajudou idosos inocentes a atravessarem a rua, brincou com crianças chorosas, tentou ensaiar sutilmente uns passos de dança na calçada, esperando que os europeus, atentos à arte contemporânea da performance, conceitual, reconhecessem seu dom artístico e a aplaudissem em moedas…

Na terra de Leonardo da Vinci, você vai dar as caras com arte contemporânea!!?? E tendo a arquitetura da Arena de Verona como testemunha!!?? Vai se ferrar, Pussy Jane!! Banana para você… Banana e arte contemporânea estão na moda!

Ótima ideia! Ainda tinha uma, madura, apesar de infantilizada, na bolsa. Buscou a banana que lhe restava e estacionou, escultura viva, com a banana na mão, em frente all’Academia di Belle Arte di Verona, esperando que algum admirador da obra de Catellan tentasse comprar-lhe a banana por 120 mil dólares, ou, pelo menos 20 euros…
Porra, estava difícil!! E ainda tinha gente que falava  mal da obra da Catellan. O cara era um gênio, isso sim! A banana de Pussy já estava congelando e ainda não valia nenhum centavo!

O gerente da Accademia veio advertí-la de que ficar mostrando a banana em praça pública, era politicamente incorreto e ofensivo, sobretudo em dia de apresentação do Quebra Nozes. O preço do quilo da banana não chegava a um terço do preço das pecans; a atitude de Pussy poderia ser vista como Marketing de emboscada. Tentou explicar que uma única banana podia chegar a 120 mil dólares, e bla bla bla, mas foi inútil.  

Desistiu de tentar justificar a obra de Catellan ou lucrar com a banana; além do mais, estava morta de fome: o fim da banana estava próximo. Já tinha ouvido algum teórico falar sobre isso em algum lugar… Freud, talvez?

E enquanto pensava na feminização masculina, na genialidade incompreendida de Catellan, no Quebra nozes, no Pão e Circo e no vestido chinês, quando estava prestes a abocanhar uma das poucas bananas que ainda não haviam sucumbido ao empoderamento feminino, apareceu-lhe um maltrapilho de olhos tristes, encarando-lhe a banana tal ela própria, pouco antes, havia fixado o vestido Capuleto.

Aquele maltrapilho que, na certa, vestia tecido chinês, assim como ela vestiria e talvez toda a humanidade já o fizesse, despertou-lhe os restos de inocência que ainda não tinham ímpeto de suicidar-se no balcão das Guiliettas Capodanno. Pussy não resistiu e, com toda virtude, entregou-lhe a banana. Toda virtude menos uma pequena mordida de centímetros, instintiva, para compensar a glicose abaixo de zero, após os 18 km e séculos de Arena que vivera nas últimas horas.

E assim passou, tentando, centavo aqui, centavo acolá, uma saída até que, na tentativa de achar outra banana sobrevivente ao holocausto da masculinidade no século XXI, ou algum biscoito de arroz, no fundo da bolsa, encontrou um ticket do tour das 5 igrejas de Verona… 5 igrejas a 10 euros e ainda lhe faltava visitar San Zeno!!

Quem sabe, rezando, ela não conseguiria os outros 30 euros que faltavam para o ingresso da festa!!??…

Opa! Era isso mesmo!! Ia se apropriar das gorjetas da Igeja, sim, discreta e deliberadamente!

Ué, acabara de presenciar, do alto dos séculos percorridos na Arena: Decameron de Pasolini, as Cruzadas, os desvios morais e políticos da Igreja, os falsos profetas, Robin Hood, a venda de indulgências no Balcão de Giulietta! O que custaria tirar 30 euros de San Zeno? Tiararia 50, isso sim!!  Assim, mesmo que a festa fosse um fracasso e ela não conhecesse nenhum italaino que lhe pagasse as refeições dos próximos 3 dias, ainda teria outros 20 euros pra tomar café em algum lugar que não fosse made in Italy. Ou, dependendo da magnitude da cagada (roubar de santo era coisa meio séria), poderia comprar o papel Romeu e Giulietta em nome de Shakespeare; ele devia a Zefirelli depois da Brexit.

Pussy não entendeu muito bem a lógica de tal argumentação, mas enfim, essa fala tinha sido de Nero… Melhor não contrariar.

Fosse quem fosse San Zeno, se fosse mesmo santo, a entenderia…

Chegou à porta da Igreja, um dos poucos lugares da cidade que ainda estavam abertos. Claro, sempre há tempo para uma doação extra, um caso perdido, ou alguém como ela, que precisava embolsar 30 euros para passar o Capodanno. Será que outros picaretas teriam a mesma ideia?

Entrou sorrateira, pisando em ovos, prestando atenção até à própria sombra, ao som da trilha de I Soliti Ignoti

Que sorte!! A Igreja estava vazia! E che fortuna deveria estar disponível para Pussy, em vésperas de ano novo, quando todas as esperanças dos credentes renovam-se e se traduzem em centavos e mais centavos de contrapartida a qualsiasi santo!!

Sentiu-se aliviada e, ao mesmo tempo, deprimida… Estava prestes a roubar dos fiéis, ainda que, parodiando Robin Hood, entregasse à si própria, uma legítima representante dos miseráveis.

Que San Zeno a perdonasse

Mas quem era, afinal, San Zeno??

Continuou seu fare l’indiano, andando como que despretensiosamente pela Igreja, em busca de informação, inventando para si um pretenso interesse pelo santo, esperando a melhor oportunidade para avançar em qualquer uma das caixinhas de oferta. Calculou, olhando por cima, umas 20, em toda extensão da igreja. Duas ou três moedas por caixinha e completaria o ingresso da festa, com troco.

Era completamente fuori testa!

Só podem ter sido as 300 voltas na Arena e os conselhos de Nero…

E assim foi, sutilmente, aos olhos de Deus e San Zeno, que, perbacco, a perdoariam: calculista, metia a mão na tigelinha de oferta, buscava duas ou três moedas, e, fazendo o sinal da cruz, colocava-as elegantemente na aba de seu chapeuzinho russo (made in Italy). A cabeça pesando toneladas, colpa e contanti.

Foi tanta moeda que, à certa altura, o pescoço endureceu, e Pussy foi andando bem devagar, mancando, para que nenhum centavo lhe viesse fuori testa e le mancasse. Até que (ufa!), a última tigelinha e… era San Zeno quem a aguardava e guardava!!!

Pussy e San Zeno

O santo, negro, retinto, a encarava: de olhos bem abertos, irrepreensível, segurando uma vara de pescar.

Como ela podia?? Como pôde ter chegado ali, no fundo do poço do Capodanno?? Roubando a oferta de fiéis da instituição mais infiel que havia existido até então?

Sentiu-se o próprio Papa, ou o que o valesse. Mas ela simpatizava com o Papa, tinha certeza que ele jamais faria isso a San Zeno! Pussy Jane é quem precisava de uma reforma!

Desnorteada, Pussy, sem saber o que fazer para redimir-se, ali, aos olhos de San Zeno, carregada de culpa e moedas, em um ato reflexo, tirou o vestido das lojas Capuleto da sacola e ofereceu, impulsivamente ao santo, como que pagando aquele seu último pecado (do ano). San Zeno, negro, encarou-a pesadamente:

Perchè non avete scelto il nero, Pussy Jane?

Oh, Deus!! Será que, além de ladra, vitimesca e comedora de banana, ela era racista?? Queria explicar ao santo que não havia escolhido o vestido nero porque Nero incendiara Roma e ela acabara de dar séculos de voltas na Arena e que, de modo algum estava assaltando a igreja porque ele era um santo negro e, sim, porque ela era pobre de espírito e…!! Como ela iria fazê-lo entender que tudo o que queria era começar um ano diferente, sem andar em círculos!? Uma Pussy nova, festiva, uma alma melhor!! Só queria ir na porra da festa com o vestido sino-italiano de 100 euros!! Não era um Gucci!! Era pedir muito!!!???

– Forse sia questo il problema, figlia.. Non è un Gucci… Capisci? –  Pussy começou a chorar copiosamente, e quando abaixou a cabeça em triste resignação, as moedas roubadas das tigelinhas começaram a cair aos pés do santo, tal a fábula do burro que espirrava dinheiro, tilintando sinfonia no silêncio da igreja vazia. San Zeno colocou a mão sobre sua cabeça que, aos poucos, ia aliviando-se do peso.

Pussy parou de chorar, arrependida de ter tentado tapiar o santo e, em outro gesto instintivo, pôs a mão na bolsa e capturou, do fundo falso (um que a própria bolsa havia costurado para poupar-lhe economias) duas moeda. Colocou uma na tigelinha do santo, suspirando e, agora, mais digna: 10 centavos de euro.

– HAHAHAHAH HAHAHAHAHA

San Zeno descompensou-se; não conseguia parar de rir. Pussy sentiu-se ofendida: San Zeno não quis os dez centavos de euro do fundo-cofre da bolsa, não quis o vestido… O que queria dela? Será que aceitaria uma banana!!? O Santo não tinha piedade?? Não entendia o quanto aquilo era doloroso??

– HAHAHAHHAA

Pussy, desconcertada, mas aliviada do peso das moedas no chapéu, levantou-se. Iria embora, desistindo de Capodanno, da festa e do vestido chinês. Não existiam Giuliettas, de nada lhe serviria Capuleto ou outro nome, nem os Santos era piedosos, e Nero não prestava só porque era nero. Estava saindo da Igreja mais descrente, roubada em uma dignidade que, aparentemente, não possuía. Pelo menos Robin Hood roubava de ricos e dava aos pobres. San Zeno queria tirar o que mais dela?

– Pussy… Pussy Jane, figlia.

Pussy virou-se e se surpreendeu. San Zeno, impassível e decidido, ofereceu-lhe a vara de pescar, tal como ela havia oferecido a banana ao maltrapilho. Ah, sim!! Agora ela entendia!! Eram as voltas da Arena: tudo que vai, volta; é dando que se recebe; cavalo dado não se olha os dentes, mais vale um coelho na mão do que dois voando! Nada daquilo era apenas trocadilho! E Pussy não mais se importou do vestido Capuleto que jamais seria Gucci, tomou a vara de San Zeno como missão; a melhor lição à vara que poderia ter tomado. Desprendida, largou a sacola dos 130 euros no chão. Estava pronta para qualquer Capodanno. Se San Zeno disse, assim seria: iria aprender a pescar no Ádige (mesmo no inverno de menos 10 graus) e teria alimento suficiente, rico em ômega 3, pelos próximos 3 dias na bela Verona. Isso, sim, era fé. Vestido chinês de nome italiano??… Aonde estava com a cabeça??

E quando estava prestes a deixar a Igreja, aliviada, reformada:

– Figlia… Pussy Jane! – Era novamente San Zeno, sinalizando que ela havia esquecido de deixar a oferta. Puta que pariu, não é que ele sabia que ela ainda tinha os 20 euros do troco do vestido?? Ok, ele era santo.

Pussy colocou uma das duas notas de 10 euros na caixinha e agradeceu.

– Figlia…

San Zeno fez um gesto, indicando 2…

Sono due: 20 euro, Pussy Jane.

Pussy desconcertouE aí, será que a vara valia tudo isso?

Dessa vez foi Benjamin:  

“Não tem nem o que pensar, Pussy Jane!! 10 euros na miniatura indiana e 130 no vestido chinês, e vai regular 20 euros para San Zeno? Capitalismo é religião: o preço da vara é  excelente! O custo benefício tá na aura!”  

É, pensando bem, Benjamin tinha razão, e talvez Pussy acrescentasse outro argumento em prol do custo-benefício: essa vara era veramente made in Italy.