Ao Pai que não Pariu

A reunião do departamento de criação do Super Center até começara palatável: café bem feito, torradas crocantes, geléia importada. Uma pena a comida ter sido insuficiente para manter calado, o chefe, ansioso para dar inicio à rodada de ideias para a campanha do Dia dos pais… Comumente, não seria uma rodada de ideias, mas um monólogo ególatra ilustrativo, com uma ou duas variações de texto de campanha criadas por ele mesmo, e que soariam obrigatoriamente geniais à maioria dos bajuladores presentes. Ideias sobre as quais Pussy Jane preferia nunca opinar, já que, invariavelmente, estaria destinada a realizar a função cúmplice de “redatora”, revisando o texto e, na medida do possível, tentando não ferir os melindrosos instintos criativos do chefe. Porque assim estava escrito: “no talento do chefe, só Pussy Jane bota a mão!”… Como odiava quando ele aparecia com suas frases sugestivamente estúpidas! Pior é que não tinha nem em que botar a mão! O chefe era casado, pai de filhos e netos, além de ser um péssimo marido. E claro… não ter, aparentemente, talento algum…
E lá foi ele, em seu dia de inspiração:

– Bom dia! Vocês devem estar se perguntando ansiosos: “O que o Super Center vai preparar para o Dia dos pais?”.

De fato tinha que ser algo capaz de sublimar a campanha do dia das mães que fora um desastre… “Sua mãe não é nenhuma Sharon Stone, mas ela abriu as pernas por você…” (????) Extremo mau gosto…

– Pois bem, para essa campanha pensei em algo carinhoso e feminino. Vocês devem estar indagando:”Feminino no dia dos pais?”. Sim: ser um homem feminino não fere seu lado masculino… Ser ou não ser, eis a questão. Isso é Shakespeare…

Ah, essa não!! Pussy Jane tentou abstrair o fato do chefe misturar Shakespeare com Ney Matogrosso, colocando, ela mesma, geleia no café, açúcar na torrada, qualquer coisa que a distraísse.

– Portanto, vamos fazer com que o pai se sinta mãe por um dia… Que pai aqui presente já não teve uma ponta de ciúmes ao constatar sua falta de útero ou mamilos desenvolvidos capazes de alimentar um ser humano?

Pronto… Agora a reunião estava realmente começando…

– Não, claro que não vamos usar mamilos por um dia…

Ufa…

– Quem nunca teve vontade de carregar um feto no ventre por nove meses, fazer ultrassom pélvico, dar de mamar, ter licença maternidade prolongada; e não ser apenas um espectador deste processo maravilhoso que é a criação da vida? Quem nunca quis parir? Já se perguntaram por que os créditos sempre vão para as mães? É a mãe natureza, a mãe terra, a mother f@#@#, é a mãe que o pariu, sempre a mãe no meio… Isso é, no mínimo, discriminatório. Será que o chefe tinha virado ativista dos Direitos Humanos? Ou será que andava revendo Monty Python? Aquilo só podia ser piada!

E apenas um detalhe, não tão importante quanto a humanização da figura paterna mas, ainda assim, um índice de submissão ao gênero feminino: o dia das mães vende, em média, 30% mais que o dia dos pais… Vocês podem tentar justificar a defasagem alegando que todo mundo tem mãe… Mas e os espermatozoides nessa história toda?

Ah, era piada, sim! Uma piada eloquente para demonstrar bom humor. Na certa ele ainda estava sob efeito do retiro espiritual de auto-ajuda e meditação que fizera no último feriado “Em busca do cale-se sagrado”; ou pelo livro que habitava sua cabeceira de mesa: “A vida de HarryPotter: como fazer amigos e influenciar pessoas” (o que infelizmente não era piada).

Para acabar com a dúvida de vocês, mostro a seguir uma pesquisa encomendada pelo Super Center, realizada no centro da cidade de São Paulo, com amostra composta por supostos filhos de pai e mãe. A pergunta foi:

“Se você pudesse escolher entre um de seus progenitores, qual deles você escolheria?”

Que empresa encomendaria ou realizaria uma pesquisa daquelas? Se os fins justificavam os meios, já dava para imaginar o nível da campanha Super Center – Dia dos Pais… Pussy Jane pôde visualizar o banner de internet: seu próprio pai amamentando ou grávido de 7 meses.

– E seguem os resultados, surpreendentes:

70% não entendeu a pergunta ou riu
10% escolheu a mãe
2% escolheu o pai
8% alegou não ter progenitores ou não saber o significado da palavra…

– É uma desigualdade tremenda. Onde está o valor dado ao provedor?

– Um pai não pode se contentar em ser um aparato, ou o culpado pela genética menos favorecida. Alguém já viu uma mãe ser acusada por uma orelha de abano, um pé muito grande, um nariz disforme do filho? O sobrenome é sempre do pai! Mas um pai é só isso? Apenas um sobrenome defeituoso? Mas afinal, o que é um sobrenome? Já dizia Shakespeare… Um pai tem que ser bem alimentado, amado, presenteado! O pai não amamenta, mas é o seio nutrisse deste lar. Queremos fazer com que o pai se sinta a mãe que nunca pôde ser…
=/

Aquilo estava completamente equivocado. Só podia ser Monty Python, endossado por citações de Shakespeare, Ney Mato Grosso e a “Vida secreta de Harry Potter”…

– Aqui vai a nossa resposta promocional aos pais órfãos de filhos mais amorosos: O pai que ganhar um presente Super Center e trouxer a nota fiscal do filho legítimo, fantasiado de mãe, ganha um final de semana mais 1 acompanhante, em um dos resorts gerenciados pelo Super Center em Comandatuba. Que tal? Premiaremos as 100 fantasias mais originais!

– Ohhh!!! – o coro dos bajuladores foi unânime.

Mas o que o chefe quis dizer com aquilo? A nota fiscal ou o filho eram legítimos? O filho legítimo viria fantasiado de mãe? O filho e pai mais um acompanhante? Pussy Jane preferiu tossir de leve, só para manter a própria opinião de redatora (para si)… =/ Calma lá né, Pussy Jane? Tem hora que tem que intervir! Você recebe pra isso: legendar as ideias do seu chefe!

E assim estava escrito: um dia Pussy Jane teria que meter a boca no talento do chefe… o que seria, literalmente, digno de uma congestão, mas lá foi ela:

– Com licença… O Sr quis dizer: o pai que ganhar um presente do filho (que pode ser legítimo ou não, afinal filho é filho) e vier até o super Center vestido de mãe, trazendo a nota fiscal do presente, recebe o prêmio?

– Isso, Pussy Jane!!!! Isso, garota!! Esse é o espírito! Mãe por um dia! Mas o filho continua sendo legítimo, de pai e mãe… Agrega valor à marca.

Ai, meu Pai… Agora só faltava a nota fiscal vir acompanhada de um teste de DNA! Mas Pussy tentou disfarçar:

– Ah, entendi… É, “Mãe por um dia” me parece… – e todos os olhares voltarem-se para ela –… me parece simpático… (?)

Não, não parecia simpático: era boçal. O pai teria a humilhação de pedir a nota fiscal da compra do presente a um filho legítimo, se travestir de algo próximo à figura da mãe (e tinha que ser uma fantasia original), sob o argumento de se sentir mãe, no dia dos pais??

– E vamos além, Pussy Jane… O diferencial de nossa promoção é muito mais que simpático: é extremamente atraente. O pai não ganha um final de semana de resort com qualquer acompanhante…

???? Mother f@#@#@!!!!??!

– O pai ganha seu final de semana no resort com uma acompanhante de luxo da nossa franquia Garotas da capa Playdaddy, by Supercenter. Que tal, hein??? Meu pai adoraria!E sua mãe também!!! Tenha dó!! Inacreditável como o chefe se superava a cada campanha, a cada slogan que Pussy Jane teria que arredondar e enfiar no próprio currículo, enquanto membro da equipe de criação.

Que vontade de pedir demissão… Mas assim estava escrito: o talento do chefe só cabia no currículo de Pussy Jane. Afinal, que outra redatora decente aceitaria trabalhar para um cara daquele? Era muita falta de auto-estima, muita!! O chefe não devia ter tido nem pai, nem mãe!

E o que os pais das Garotas da capa Playdaddy pensariam sobre aquilo? Será que elas também eram filhas de geração espontânea? Que mãe gostaria de ver seu marido, pai de família, ganhando um presente promocional daqueles?

Que pai gostaria de ver a filha como garota da capa Playdaddy?? Que filha gostaria de ver o pai fantasiado de mãe… Enfim o que o chefe estava querendo? Destruir a instituição familiar????

– Com licença, chefe… Mas eu não sei se isso vai funcionar… Talvez as mães, filhos e pais se sintam ofendidos… um pouco… eu acho…

– Ohhhh!!! – ninguém acreditou: Pussy Jane emitira uma opinião contrária à ideia do chefe? Todos os rostos, apáticos, voltaram-se para ele, atentos a sua reação, invejosos pela coragem de Pussy, mas sorrindo entredentes, esperando uma carnificina trabalhista. E assim estava escrito…

O chefe a encarou interrogativamente:

– Pussy Jaaane… Quem deu esse nome mesmo para você? Seu pai e sua mãe? Parece ofensivo, depende do ângulo que olhamos, não é?

– Hahahhahahahaha – foi um coro coletivo

Pussy Jane corou como nunca…

– É, nome de pai e mãe. Uma homenagem à escritora Jane Austen e à personagem Pussy Galore, de Ian Flemming. É um nome muito intelectual, por sinal…

– Pensei que fosse homenagem a Monty Python… Muito intelectual… –

– Hahahhaha – novamente o coro coletivo.

– Pussy Jane, bonito nome… Eu gosto de ter minhas ideias desafiadas…. Gosto, gostei… Gostei mesmo… Você conhece o curso de auto ajuda e meditação: “Em busca do cale-se sagrado”? Você já leu: “A vida de Harry Potter: Como fazer amigos e influenciar pessoas”? – o tom do chefe era de carnificina trabalhista contida.

– Leia, Pussy Jaaane… Frequente um curso de auto-ajuda, e apenas ouça, de vez em quando – e entregou o livro para ela, com um cinismo de quem realmente odeia ser desafiado. – Acho que você ainda tem muito a aprender na carreira. Mas não desanime, você ainda será uma ótima redatora publicitária. Confio no meu taco por confiar em sua capacidade.

Quanta humilhação! Ser pisoteada por praticamente um personagem de Monty Python em busca do ‘cale-se sagrado’.

– E como sou um bom chefe, vamos começar com um empurrãozinho. Você será a embaixadora do evento Playdaddy Dia dos pais. Por dois motivos muito fortes: 1 – seu nome sugestivo e 2- sua astúcia… Precisamos de mulheres assim na linha de frente dos novos negócios. Passe no departamento de fantasias para pegar o uniforme Playdaddy mais tarde. Ah, e ensaie a coreografia… Reunião encerrada! Feliz Dia dos Pais…

E o chefe saiu em um mau humor como não se via há tempos. Pussy Jane, chorosa, começou a folhear “A vida de Harry Potter”, tentando imaginar o que iria dizer ao próprio pai sobre sua nova incumbência: embaixadora Playdaddy.

Daria (quase) tudo para voltar aos slogans idiotas… Mas nunca mais meteria a boca no talento de chefe nenhum. Definitivamente, isso era serviço para as Garotas da capa… E ela estava quase lá; afinal, na sua vida pessoa, produto, aumento de vendas, de mamilos, direitos humanos, pai, mãe, Harry Potter; já estava tudo no mesmo patamar… Exceto Monty Python… “A vida de Brian” era outras história…