O Alterego e o Corselet

Há tempos não se sentia assim, em inacreditável reencontro consigo. Uma espécie de elevação espiritual, êxtase… Era elementar: Pussy Jane estava aparentemente apaixonada.

Mas dessa vez (a exemplo de algumas outras) tinha sido amor à primeira vista, irreparável, irremediável, arrebatador… Irracional, impulsivo, totalmente inconsequente: o seu objeto de desejo custava a mísera quantia equivalente a um terço de seu todo salário…

Péra lá, né, Pussy Jane? É normal projetar a felicidade no encontro ideal de um suposto agente que nos complete, que faça com que nos sintamos amados, autênticos, legítimos, bonitos… Tudo bem, todas as pessoas acreditam em finais felizes, e até colorem cavalos como príncipes encantados; mas quando o objeto de desejo é um corselet Christian Dior…. (?) Aí você já está na seara do amor impossível, totalmente condicionado às égides do capitalismo gutural, que elege marcas como valores de vida! Esse seu flerte está fadado ao sofrimento.

O que está havendo com você Pussy Jane? Isso não é um corselet, é um fardo, além de custar um terço do seu salário.

E, de fato, se Pussy Jane tivesse o trabalho de mensurar, matemática e psicologicamente, um terço de seu salário em termos de horas de vida “mediocre-idiotizada”, criando slogans desinteressantes para campanhas publicitárias e promoções das lojas de departamento do Super Center, seu local de trabalho; talvez calculasse que seu tempo valia muito mais que um corselet Dior. Afinal, marca por marca era tudo questão de publicidade…

Mas que droga, sempre tinha que ser escrava da insegurança… Se fosse uma mulher decidida, daquelas que se apaixonam e não medem consequências, que sabem o que querem e têm peitos para assumir que eles se encaixam perfeitamente em um modelo Dior, daquelas que se recusam a criar frases feitas para propagandas de implantes dentários ou dia dos namorados (ela já estava exausta de fazer isso), daquelas que não ganham uma miséria mensal como redatora publicitária e regulam a compra de uma peça de vestuário essencial à auto-estima só porque custa um terço do salário… Se fosse outra Pussy Jane seguiria seus cegos instintos, e o cartão de crédito que se arranjasse no final das contas.

Droga, gastava dinheiro para ser chamada de louca no analista e continuar em tratamento. Por que, diabos, não podia remediar-se comprando a p@#@## do corselet??

‍Calma, Pussy Jane… Argumentando é que a gente se resolve. Vamos lá: o que você vai fazer com o corselet ? Salvar a África, acabar com o analfabetismo da América Latina, proclamar a paz mundial, proteger as tartarugas albinas do pólo norte? Se é a Angelina Jolie vestindo o corselet na reunião da ONU, ou o Jackie Chan vestindo o terno de um milhão de dólares, tudo bem, é ficção… A roupa vale o que não vale cada centavo; fica até bonito.

Agora você vem querer levantar a bandeira em favor do supérfluo com um ícone do kitsch, e tem como argumento de defesa somente o resgate de sua demente auto-estima?

É pior que criar slogan para vender cartilagem de boto para solucionar problemas de ereção. Desculpe, Pussy Jane, você está sendo mais medíocre que as frases de efeito que inventa para o Super Center.

Que droga!! Por quê não podia gostar de um simples corselet extravagante? Por que o mundo todo tinha que dar palpite no que se pensa, se usa, se compra, se veste? Que vontade de sair correndo sem roupa, sem marca, sem identidade alguma. Que vontade de ser livre de rótulos. Se saísse sem roupa seria julgada, se saísse de corselet também… O que o mundo queria das pessoas com opinião própria?

Não, meu bem… Isso não é caso de opinião própria, mas de auto-estima arruinada. Não adianta compensar sua fracassada vida sentimental e sua negligência consigo mesma, com a compra de esperanças emolduradas num corselet de vitrine… Tá ficando louca? Sai mais barato procurar a alma gêmea. Você acha que vai se sentir amada, desejada, maravilhosa por quanto tempo? Isto é, se você ficar realmente maravilhosa. Você acha que suas medidas estão de acordo com o manequim? Acha mesmo?

Imagine se você compra o corselet e, ainda por cima, se sente mais gorda, ou menos atraente? Afinal, você não é lá essas coisas… Se enxerga né, Pussy Jane! Tudo bem que você se movimenta e tem cérebro, mas não dá para querer competir com a cinturinha do manequim de vitrine, né?

Ah, que droga!!! Já era tão difícil gostar de alguma coisa. Tinha que se avacalhar daquela maneira? O corselet parecia perfeito… Desde criança sonhava em vestir um modelo daquele e ter um sapato de lacinho, era como ser a Barbie por um dia. Seu pai nunca permitira… “P@@@@ Pussy Jane!! Sapato de lacinho? Vai pra escola ou pra algum desfile de Carnaval? “

Agora que era maior de idade e tinha seu próprio salário, seria mágico possuir um corselet Dior, mesmo sem a cintura do manequim… que era realmente impecável…

Pussy não quis admitir, mas teve ciúmes daquela cintura… Uma circunferência tão feminina, tão desenhada, tão… desumana. Sentiu-se um lixo com sua roupa mundana (um jeans sem glamour acompanhado de saltos altos incomodados e faltas de lacinho).

P@@@, Pussy Jane! Aonde você vai querer sair com isso? Pense bem em que tipo de homem vai atrair… Ou algum estilista cafona em busca de identidade, ou algum cliente… Pussy Jane, tenha dó!!! Se está pensando em arrumar um namorado, esquece. Esse tipo de compra é bem mais para quem está interessada em se livrar de algum. Aonde você acha que um marido ou noivo a levaria para jantar vestida assim? Só se fosse carnaval e ele estivesse vestido de Pierrot, ou palhaço mesmo. Está buscando arrumar um amante, é isso Pussy Jane? Um amante rico então, né? Porque o primeiro corselet seu salário consegue pagar, mas vai ter que ter muitos outros para sustentar a relação classe A. Ou vai encontrar o rapaz sempre com o mesmo corselet? Se você está se vendendo Dior, não adianta depois assumir a 25 de Março, meu bem… Melhor definir claramente sua identidade.

Mas que droga!!! Só queria se sentir bem consigo mesma, ser a Barbie por um dia, ou dois talvez… Ou até vestir o corselet todos os dias, em segredo, só para se olhar no espelho e se ver mais Dior… E toda essa argumentação interna só a fazia concluir que era mesmo um fracasso emocional tentando amenizar frustrações com pequenas (nem tão pequenas assim) indulgências.

Afinal, estava ou não apaixonada pelo corselet? E se investisse todo o salário em busca do corselet ideal e descobrisse que era só um truque de vitrine, que ela se sentia igual com ou sem corselet, vestida ou pelada? Não, ainda não tinha atingido esse nível de aceitação e liberdade… E se o corselet fosse uma ilusão de ótica? E se o manequim fosse mesmo uma mulher muito mais perfeita do que ela? E se ela fosse rejeitada pelo corselet??? Por um corselet Dior?? E tudo isso ainda tendo em jogo um terço de seu todo salário…

Como era péssimo não ter auto-estima. Como era péssimo não ter nem dinheiro nem auto-estima. Agora tinha que escolher entre o corselet e a aposta de se tornar uma nova Pussy Jane; ou entre o corselet e certeza de que seria sempre a mesma Pussy Jane… Teria que escolher e rezar para conseguir comprar qualquer uma das duas ideias com, pelo menos, 30% de desconto… Como Pussy Jane era infeliz…

Tentou não se comparar muito ao manequim da vitrine… Mas era claro que ela, mesmo vestida de corselet, não chamaria a mesma atenção que o manequim… Era óbvio que qualquer rapaz de bom senso convidaria o manequim para sair, tomar um drink, uma volta na praça, um jantar, um cinema… Pensando assim, era patético comprar um corselet para tentar igualar-se a mulher perfeita da vitrine… Era humilhante. Ela jamais seria digna de um corselet Dior, jamais…

Pussy Jane derrubou-se em uma lágrima fugidia, querendo embaçar a visão do corselet e da mulher ideal que ele vestia. Pussy Jane desiludira-se mais um vez… Nem o corselet a queria, nem mesmo por um terço de seu todo salário…

Então, como que em um lampejo de esperança, Pussy Jane pensou nos slogans imbecis que criava para sobreviver, nos namoros falidos, na cartilagem de boto, nos problemas de ereção e no dia dos namorado… Encarou a vitrine, respirou fundo, ainda com um aperto no peito do bolso, e no peito do pé que era feito para vestir-se de lacinho. Entrou na loja, mais decidida do que nunca. Uma Barbie pós-moderna:

– Por favor mocinha, aquele lá, da vitrine… Vou pagar à vista. Ah, só uma coisinha: você pode me dar aquele mesmo, da vitrine? – e sorriu vingativa.

‍A manequim que se arranjasse com um corselet de liquidação, ou procurasse um cliente, amante ou namorado que lhe pagasse outro Dior à vista… Aquele, definitivamente, tinha nascido para ser seu!