A Distância, as Catedrais e os Pontos Finais

Era uma vez, a última vez… E Pussy ainda não sabia como se sentia ou deveria se sentir. O trânsito estava absolutamente insuportável, como de costume, como algo a que nunca se deveria acostumar. Engraçado, as pessoas simplesmente se acomodam, em um sentido tão absurdamente diferente do que de fato deveria ser “acomodar-se”. Acomodar-se não é cômodo: dói, irrita, arranha. Não existe acomodação cômoda, assim como o trânsito caos, as luzes incisivas do farol vermelho, as notícias estúpidas na rádio de notícias estúpidas… Tudo era como sempre: como os finais, os últimos encontros, como aquele seu momento em que ela não sabia ao certo como deveria se sentir.

‍Ora, Pussy Jane, os finais abraçam a liberdade, sinalizam a mudança, violentam retrovisores, são paradoxais… Sorriem o desconforto que não é nada cômodo, mas movimentam e são vida, apesar de fazerem nascer um novo parágrafo mediante morte e ponto final. Os finais te trazem de volta, Pussy Jane. Por que o medo?

Ah, então era medo… Era medo que sentia… Sempre teve tanto medo de sentir medo… Que diabos!! Como poderia ser escritora se não sabia usar o ponto final, se confundia passado com presente e era inconsequente demais para usar vírgulas e estruturar períodos? Ou ela se achava mesmo James Joyce, ou era um completo fracasso! Um escritor precisa de começos, meios e fins, conclusões e argumentos. Que tipo de escritora era aquela que não sabia como se sentir diante de um final? Feliz?

Por que afinal a regra nomeava os finais como felizes? Que estúpidos eram os contos de fada da infância, seus sapatinhos de cristal, os casamentos caricatos, as fadas madrinhas e a última página escrita em letra gótica austera: Final Feliz.

Pussy menina sempre se sentira distante daqueles finais felizes… Tinham o mesmo gosto da distância que sentira quando de sua primeira visita a uma catedral. Podia ser em alguma Inglaterra, Milão ou Paris, podia ser sua primeira ou última catedral; para ela, estaria sempre calcada e concreta em letras de final feliz: góticas, perturbadoras e tão incoerentemente coloridas. Definitivamente, finais não podiam ser felizes!

As catedrais de Pussy Jane eram em preto e branco: passado e memória. Como os pontos finais, brincando de trazer novas cores, mas deixando-a ali, tão pequena, menina, tão longe de Deus. A mesma distância que não se pode medir entre aquele que tem o poder e aquele que implora. A distância, as catedrais e os pontos finais. Indeléveis, sublimes e concretos.

‍Irônico… Havia passado uma toda existência julgando-se uma boa contadora de histórias, e o que a vida lhe oferecia? Um momento de morte: o trânsito caótico, medido a tempo perdido, separando-a do que ela deveria sentir em seu confronto com um ponto final. O prazer de se estar vivo versus a certeza de morte…

Talvez por isso as pessoas se ocupassem de unhas a fazer, contas a pagar, faróis vermelhos, vida do vizinho, capítulo da novela. Existe perigo mais voraz do que a não-ficção? Do que confrontar -se consigo diante da certeza dos pontos finais reais?

Calma lá também né, Pussy Jane? Menos Drama Queen please … É só o último show do Scorpions, e você nem está tão atrasada… Não é a confirmação do apocalipse Maia, o PT ganhando mais uma eleição, a saída do Bruce Dickinson do Iron Maiden… É só um último show! A quantos últimos shows do Scorpions você já foi? Ano passado a banda anunciou a mesma coisa…”Sting in the tail” era pra ser o álbum de despedida. Vai com calma, é só mais um último show…

‍Não, definitivamente não era… Era a intermitente lição de lidar com a possibilidade de pontos finais. E seu grau de habilidade em aprendê-la poderia fazer daquele o melhor ou o pior momento de sua vida finita, nada intermediário ou menos decisivo que isso, porque, afinal, a vida não é intermediara, ensaio ou rascunho; é o original publicado. E Pussy Jane, ridiculamente às voltas consigo mesma por causa de um maldito último show, o que por si só, já o tornava catedralizado parte de sua história pessoal, como os momentos memoráveis devem ser…
Ou não?

Claro que não, Pussy Jane! Momentos memoráveis servem para alimentar de nostalgia as catedrais indeléveis, fantasiadas de mosaico colorido, mas enterradas na alma em preto e branco.
É isso que você quer se tornar? Um ser humano finito, aprisionado por infinais, carregando memórias que não morrem enquanto seu tempo passa? Logo você vai começar a amar os capítulos de novela, depender das contas a pagar, das unhas a fazer, e achar extremamente relevante a roupa a vestir; afinal, pode-se trocar a roupa, não a alma…

‍Tudo mecânico e infinitamente repetitivo para sedar o presente de sua consciência de fim. E um presente anestesiado não dói, não se move, não cutuca; só existe resistindo na medida do tolerável desconforto habitual com o trânsito, as distâncias e a convivência pacífica com as catedrais em cinza. Primeira marcha, segunda e até, quem sabe, uma quinta; mas ainda assim se está sentado no banco de um carro, protegido por janelas e orientado por faróis… Até que o tempo e a distância pareçam ser apenas números aprisionados em relógios e velocímetros digitais, e nem pareçam mais vida. Daria até pra esquecer que esse poderia ser o último show do Scorpions e, talvez, o último show… Ídolos também adoecem, Pussy Jane. Ou somos nós que adoecemos o caminho? Esquecemos que o velocímetro desperdiçado não é apenas relação tempo-distância, é a vida passando… Adormecemos alguma coisa lá dentro, ate que o que era sonho se torne apenas mais um show, mais uma mentira.

Engraçado isso, de um jeito que não faz rir… Adormecemos de um jeito que inspira os olhos a chorarem; e não pela novela, pelo final feliz ou infeliz do filme; nos inspira a chorar simplesmente pelo fato de nos depararmos com o fim. Um ponto final.

Era uma vez, era pra ser só o grande último show do Scorpions. E Pussy estava atrasada, presa no trânsito e nas distâncias das catedrais que construíra dentro de um si, que já não sabia se era um si, seu, ou se… Um si condicional, condicionado aos trajetos de farol e a olhar o mundo pela janela conversível de um carro comum. A janela que, ora a jogava pra dentro, ora a arremessava para fora. Diabos de mecânica falha!! A janela devia ser feita para proteger, vedar, e não para fazê-la enxergar a própria alma: o trânsito não era trânsito, o caminho não era só caminho, o show do Scorpions não era só o último show do Scorpions.

Tudo doía metaforicamente como uma picada letal. Uma piada letal.

   Take me to the magic of the moment
   On a glory night
   Where the children of tomorrow dream away
   in the wind of change

E a música em si, ou lá, ou fá… tocando em um tempo que não era real, mas era totalmente seu: a infância… Como Pussy Jane menina adorava aquela música! E nem tinha idades ainda para saber que se tratava de Scorpions, de si ou lá ou cá, e que um dia se trataria de assistir a um último show de sua vida. Será que a menina adivinhava o que as mudanças trariam?

“Wind of change” era o nome da música! O que será que Pussy Jane de tranças diria àquela moça no volante confrontada de ponto final, atrasada, presa no trânsito das janelas conversíveis das catedrais dos impossíveis finais felizes?

“Wind of change” era o nome da música… Era Scorpions, a vida e o ponto final.

In the wind of change…

E a menina sorriu, ali no meio de alguma Marginal Pinheiros, de um centro urbano como São Paulo ou Londres, a caminho de um seu último show que era também seu primeiro… Tudo o que a menina queria era assistir ao show da banda que tocava “Wind of change”.
E a menina sorriu: o volante que a dirigia, os faróis que divertiam, até a pilha de carros enfileirados, xingando uns aos outros, e maldizendo a urbanidade devastadora. A menina sorriu: era o último show do Scorpions e ela estaria lá!! Então, o ponto final que era interrogação não a pôde perturbar, porque poderia ser interrogação sempre que quisesse, afinal, era ela quem desenhava, era ela que seria James Joyce ou apenas Pussy Jane Allsteam. Absolutamente ela… E as catedrais colidiram-se e, em mosaico, coloriram-se de alma, e as distâncias entre tempos passados e futuros dissolveram-se de regras de sintaxe. E os finais pontuaram-se volantes, na palma da mão, transitáveis, transitórios, inesquecíveis novos começos…

   In the wind of change

Não era apenas um show, nem era apenas Scorpions… Era Pussy Jane Allsteam escrevendo sua própria história. Ponto final.