Quando Nietzsche Chorou – Parte II

Home sweet home…

Pussy Jane e as sete Peekaretas chegaram exaustas. A perspectiva trágica de ser apanhada no trânsito com suas ilustres passageiras e ter que realizar, talvez, um teste do bafômetro ou sabe-se lá assoprar ou pôr a boca em mais o quê,

(afinal, a polícia a julgaria uma pervertida e, para a perversão, a diferença entre a boca e qualquer outro buraco é só semântica) arrasou-a mental e fisicamente, acrescendo-lhe uma fome fora do normal…

Pussy comeu qualquer coisa (meia lata de atum ou sardinha, um resto de pipoca de um ontem, uma lata de refrigerante aberta há alguns dias) e teve o cuidado de nem oferecer picas nenhuma às mais novas companheiras de trabalho, que continuaram no saco da Kopenhagen, escondidas, cabisbaixas, exauridas, desconfiadas, deprimidas e absolutamente brochadas…

E foi entre uma ideia e outra indigestão que Pussy começou a rabiscar bobagens. Pica daqui, pica de lá e, de repente, capotou de sono, quase esquecendo-se da pica que teria pela frente, criando slogans e layouts até o fim da tarde do dia seguinte… Como se não bastasse o pesadelo, acordou assustada madrugada adentro, com os berros das Peekaretas. Não, não! Não eram Peekaretas, era seu cachorro…

Oh, não!!! Picas a beliscassem! Luck havia encontrado o saco do Papai Noel: a inocente sacolinha disfarce da Kopenhagen, onde as meninas coloridas habitavam… Era só o que faltava!!

As caixas estavam todas aos pedaços e Luck, tão inocente quanto a sacola, coerentemente, sem associar figuras e “falicidades”, tal o faria a um osso de brinquedo, havia agarrado a Peekareta mais razinza pelo pescoço (bem feito!!); justo aquela que havia sugerido a Pussy que arranjasse uma pica. A pobre Peeka roxa estava praticamente estrangulada e as demais, histéricas e apavoradas, gritavam por socorro.

O cachorro latia, as picas histéricas, Shirley tirando selfies #amomuitotudoisso#, o chefe pisando na sua cabeça, o teste do bafômetro, a boca e outros buracos, o flagra do arco-íris de peekas esconderijas, fugitivas, aflitivas… Não!!!! Aquilo só podia ser um pesadelo, e era! Mas não era…

As Peekas tinham razão: se ela tivesse a dignidade de ter pedido demissão, nada daquilo estaria acontecendo. Luck não estaria cometendo um assassinato, ela não teria que vender pornografia a adolescentes, a Shirley não daria autógrafos como escritora, dividindo glórias literárias e ocupando a mesma prateleira de Nietzsche, o mundo estaria no lugar. Girando, mas no lugar!!!…??

Que mundo era esse!?? Realmente nem as leis da Física faziam sentido…

Pussy teve ímpetos de atirar-se pela janela. Mas o que diriam dela se encontrassem em seu apartamento post mortem uma toda coleção de Peekaretas?? Iria aparecer no Dantena: “Solteirona desvairada, após orgia, atira-se da janela de seu próprio apartamento”. Capaz ela fosse ainda indiciada por aliciar cães ou algo do tipo! Quem deixaria seu próprio cachorro à mercê de 7 Peekaretas e cometeria suicídio?? Desistiu de morrer, não daria tal publicidade para as Peekas da tia Shirley. Preferiu pôr ordem no chiqueiro:

– Luck!! Larga essa Peeka idiota!!! – e olhou com remorso para a Peekareta cor-defunto. – Desculpe, eu não quis ofender, a culpa não é de vocês, é tudo culpa daquela demente da Shirley…

E voltou para o cão assassino:

– Luck!! Olha só, olha!! Biscrock de chocolate belga!!!

O bicho olhou desconfiado… Chocolate belga?? Uma pica por um chocolate belga? Humm… Fazer aquela troca colocaria-o em qualificações histéricas. Pica por chocolate, chocolate por pica… Não, não… Precisava se vender por mais que isso. Luck já tinha lido Freud o bastante para ceder ao trocadilho infame que Pussy Jane lhe propunha.

– Tá bom, tá bom, Luck… Que tal um diamante? Uma pica por um diamante?!!

Lucky riu… Pera lá, Pussy Jane, “Diamonds are a girl’s best friend”, but for a dog?? Fuck off! Ela só podia estar de sacanagem. Primeiro aquela caminha pink, agora referências à Marilyn Monroe?

Pussy Jane só podia estar no filme errado, ou ele estava ficando com cara de Lassie.

– Ta bom, tá bom!!! Meu reino por uma pica!!! E uma peeka viva, por favor, Luck! Solta essa maldita Peekareta!!

Ah, agora sim… Shakespeare sempre é bom negócio. E apesar de Pussy não chegar aos pés da carga emocional de Ricardo III, valera a tentativa. Pussy Jane já estava quase parecendo a Shirley um pouco mais culta em suas referências fora de propósito. Tá ficando #amomuitotdisso#, Pussy? Tem certeza? Toma vergonha na cara! Uma pica por um cavalo vá lá, mas o resto…

‍E Luck finalmente, após a paráfrase de “Meu reino por um cavalo” bem colocada (diga-se de passagem) por Pussy Jane Allsteam, largou o “osso”.

Pussy recolheu a pobre pica desmantelada. Lavou-a na pia do banheiro, colocou uns esparadrapos, secou e depositou novamente na sacolinha Kopenhagen. Até sentiu um certo remorso, uma compaixão; seus ímpetos assassinos de pica estavam prestes a fazê-la passar para o estado #amomuitiotudoisso# e #naolargomaisoosso#. Quase envolveu a pequena grande Peeka nos braços, mas…

– Deixa de ser otária, Pussy Jane! – Pussy conseguiu ler o pensamento da Peeka que, mesmo quase em coma, continuava ácida e irônica…

Chega! Para ela bastava!

Desenrolou-se de qualquer apelo emocional que qualquer Peeka ainda pudesse causar-lhe. Foi até a garagem do prédio e as jogou todas, em sacolinha Kopenhagen, no latão de lixo. No trabalho, daria a desculpa de que tinha sido roubada, que as picas tinham desistido de virar brinquedo, que estavam com dengue, Chicungunha… Desde que aparecesse com os textos e o manual de boas maneiras, provavelmente estaria tudo ok…

Voltou ao apartamento: o bicho parecia tranquilamente satisfeito com a referência a Shakespeare “Meu reino por um cavalo!” e já estava instalado em sua caminha pink lendo “Assim falou Zaratustra”. Com a paz retomada, Pussy rascunhou umas 3 ou 4 ideias, nada que julgasse digno de si e suas referências shakespearianas. Na verdade, nem sabia porque exigia-se tanto; Shirley acharia qualquer coisa feita para si, o máximo. Peekaretas infanto-juvenis, que piada! Devia dar risada! Ou não… Talvez devesse chorar mesmo. Chorar pra karalho!!!

Trocou algumas ideias sobre existencialismo e redução fenomenológica com Luck que, apesar de consumir bolachas caninas e enlatados Baba-cão, era consciente de seu papel transcendental enquanto cão de uma pseudo-transformadora do mundo, tinha princípios e era ótimo em dar conselhos.

E foram séries e séries de ideais de base filosófica a escatologia pura até que ambos, exaustos, quase desmaiando de sono, acordaram atordoados com um grito alucinante vindo da vizinha:

-Ahhhhh, ahhh, seu Felício!!!! Eh satanás!! Olha isso aqui na minha porta!!

Os piores temores de Pussy materializaram-se na sua frente, e na frente do apartamento da vizinha! Peekaretas de uma figa!! Estavam todas as sete espalhadas no tapete de entrada de dona Alzira, e assustadas com o desespero das duas: Pussy Jane, a solteirona existencialista, dona Alzira a solteirona existencialista.

Pussy teve uma espécie de dejavu às avessas com aquela cena… Será que dona Alzira era ela amanhã? A porra do mundo girando sem sair do lugar! Que merda de Lei da Física era aquela!!?? Dona Alzira era ela amanhã? Mas existia, de fato, o tempo? Sob as Leis da física quântica seria possível: ela e ela ocupando o mesmo espaço com uma reprodução descomunal de Peekas? Freud? Nietzsche? Husserl!! Socorro, vovó!!!

Luck, apesar de amante da Filosofia, ainda não tinha resposta para tamanhas indagações. Tentou esconder alguma Peeka, afinal seria questão de instantes até que alguém chegasse para socorrer Dona Alzira, dado o volume do escândalo e do tempo que fazia que a vizinha não via uma peeka; mas as travessas astutas estavam dando um baile no pobre cão leitor de Shakespeare.

– Meu reino por uma Peeka!!! – dessa vez foi dona Alzira quem gritou e desmaiou violentamente. Pussy e o bicho entreolharam-se, assim como as Peekas mais instruídas: Uau, Dona Alzira conhecia Ricardo III!!

Até que adentrou à cena, seu Felício, o zelador, que acabara de subir para verificar o ocorrido… Antes que qualquer Peeka abrisse o bico, Pussy tentou se explicar:

– Ai, seu Felício, é que eu tenho que fazer uma campanha publicitária pra amante do meu chefe que quer ser uma espécie de escritora pornô com manual de boas maneiras e me mandou engolir todas essas picas coloridas, e meu cachorro deve ter ficado indignado porque ele me conhece e sabe o que Nietzche diria se me visse de mãos dadas com a mediocridade do mundo e …

Mas Seu Felício não se conteve:

– Hahaha!! Que porra é essa? Eita!!! Hahahaha

As peekas, em estado de choque, temendo serem escorraçadas, linchadas ali mesmo, emendaram risos nervosos:

– HAHAHAHAHAAH HAHAHA

E a mulher desmaiada nem dando ouvidos àquela cena dantesca.

– Hahahha a Dona Alzira, hein?… Sabia que um dia isso ia acontecer, e ela que dizia que nunca abria a porta pra homi nenhum! Olha lá: acabou desmaiada num monte de cacete… Tinha que ser um por vez, Dona Alzira. Logo sete!!?

– HAHAHAHAHAHHAA – As Peekas suavam do mesmo frio que Pussy Jane e Luck, cúmplices de uma, talvez, morte súbita.

– HAHAHAHAHAH – Dessa vez Pussy e Luck entraram para o coro das Peekas risonhas; e foi um momento memorável, mágico: as Peekaretas, Pussy e Luck dividindo a mesma aflição, comparsas.

Algo acontecia: um laço de cumplicidade pela culpa compartilhada, que parecia uní-los para sempre, independente da concepção ou significado do tempo. Nietzsche, morto, deveria estar morrendo de rir e chorando. O momento era, de fato, tocante…

– Vou levar a muié pra tomar uma água, deve ter se assustado!! Olha o tamanho disso, pai do céu!!! – seu Felício pegou uma das Peekaretas na mão para conferir. – Ai, ai, acho que o cachorro engoliu um teco… Deus do céu… Vai levar ele pro veterinário, Dona Pussy; vou dar um jeito na Dona Alzira, aqui…. Chamar o seu Adolfo do 15, o médico do coração. Agora,  se o cachorro num engoliu, o pedaço do troço deve de tá em algum buraco né? Eita nóis, é cada uma…. Brigada Dona, Pussy… E tó, segura aí esse troço, que num quero minhas expressões digitais aí, não! Vai que a polícia aparece…Tenho família, né? Eita, Dona Alzira…

– Obrigada seu Felício, muito obrigada!!

Seu Felício largou a Peekareta cor-de-rosa nos braços de Pussy, que agora estava absolutamente emotiva e receptiva e, assim que o zelador adentrou ao elevador com Dona Alzira desmaiada, deu um beijo afetuoso em sua mais nova (agora, sim) amiga.

Todos suspiraram aliviados: Pussy por não ter sido incriminada por trazer as Peekas para o prédio de família (mal sabia seu Felício que as meninas inocentes não passavam de brinquedos de linha infanto-juvenil);  as Peekas por não se indisporem com Pussy Jane, afinal elas não queriam ter causado pânico, só estavam procurando a porta do apartamento de Pussy para se desculparem e saírem da lata do lixo; e Luck, porque finalmente poderia voltar a sua leitura filosófica e dormir, afinal “Seu reino por uma boa e reconfortante noite de sono” era mais interessante que seu reino por qualquer Peeka… Pussy também pensava o mesmo.

‍Entraram todos, aliviados, no apartamento 69 de Pussy que, arrependida por ter maltratado as meninas, resolveu oferecer-lhes um belo jantar (outra meia lata de atum, uns restos de pipoca , um meio sanduíche de mortadela light, um bom e quente café); afinal o que era uma Peeka pra quem estava trabalhando para a tia Shirley?

As Peekas alojaram-se: algumas no closet, outras na caminha cor de rosa de Luck (que bom, ele detestava aquela caminha metrossexual; seria um bom álibi para pedir uma cama nova); outras ainda, com um pouco de insônia, ficaram no sofá assistindo Investigação Discovery.

E foi assim, como falou Zaratustra, do alto do improvável e da existência de uma verdade extra-moral,  que se iniciou uma grande amizade…