Central Park – Nova Iorque
Um grilo a observava, equilibrado no vidro do carro em movimento. Pussy Jane, de dentro, passageira, espiava suas entranhas. Estranha aquela visão: os olhos do bicho, penetrantes, confidentes.
O rádio tocava Deep Purple: “Can you remember, remember my name?…” Perfect Strangers era o nome da música! E às vezes Pussy não conseguia lembrar o próprio nome…
O grilo parecia saber disso… “As I float from your life…”
Antes que o bicho fugisse, Pussy tentou capturá-lo com a máquina fotográfica. Queria registrar aquele encontro que os fazia de mesma espécie: ela, a passageira estrangeira; ele, o grilo norte-americano, pousado em seu vidro janela que nem seu era; encarando-se ao som de Perfect Strangers. Um vidro fechado, uma tarde de sol e quem sabe, solidão. Não dessas tristes, que se canta em música de amores chorosos. Uma solidão dura, por concreta, de ser si mesma. Logo ela que, muitas vezes, nem seu nome lembrava… Devia ter algum problema com nomes.
“If you hear me talking on the wind… you’ve got to understand we must remain Perfect Strangers…”
Então Pussy Jane preparou foco, lentes e olhos. Estava pronta para prendê-lo para sempre em um instantâneo digital quando o vidro da janela se movimentou e ele fugiu, em alguma rua de uma país que era estranho e que, naquele momento, não mais lhe era.
O grilo-gafanhoto, o inseto, besouro, desapareceu… voando em suas asas as necessidades de Pussy, de apreender as coisas que não lhe pertenciam…
Teve ímpetos de jogar a máquina pela janela… perseguir o grilo de sua liberdade.
Uma vontade de se livrar das tentativas de registros e explicações que deve ter herdado de não sabia de quem…
Sabia, sim… herdara de ser humano. Grilos gafanhotos não precisavam entender momentos, apenas observar e voar de suas próprias asas, sem pesos de passados e penas de futuros. Insetos eram sábios…
E virou-se para o lado, banco motorista. Seu pai dirigia o automóvel. Fora ele mesmo quem abrira a janela e permitira a fuga do grilo mudo-falante. Seu pai… seu próprio pai sabotara a vontade de registrar momentos e guardá-los para sempre… Seu próprio pai… Teve vontade de culpá-lo pela fuga do inseto. Claro, todo primeiro ímpeto é culpar os pais, mas é trivial, é muito pouco próprio para quem está em busca de sua identidade.
Culpou-o, sim, afinal, todos reagem crianças e um tanto mimados ante a perda de um algo. Mas perdera algo que nem era seu. E aí?? E aí, ninguém é culpado. Nem o grilo, porque sua fuga não tinha sido fuga, fora instinto de asas. E o ressentimento de Pussy nem fora ressentimento, apenas instinto de quem pensa que possui, de quem desistiu da própria liberdade e desativou as próprias asas.
Olhou para o pai, que nem era seu pai. Também era da mesma espécie do gafanhoto e da mesma espécie livre de que ela queria inventar-se. Inventar não, de que queria assumir-se.
E viu nele a mesma voz do inseto voador, reiterando liberdades. Foi isso sempre que o pai tentou ensinar-lhe: a voar… Ela nunca havia entendido… Ela, que sabe-se lá de onde guardara necessidades de registro e espera. Ela, que sabe-se lá de onde aprendera a ser prisioneira. Disso não podia culpá-lo…
Até se orgulhou da conclusão responsável: era autora dos pronomes que carregava até então, de seus sujeitos indefinidos e mal explicados, suas sintaxes proletárias, pobres, não por gramáticas, mas por se fazerem tamanho dramáticas. Tal as canções de amor-ódio e melodramas, aquelas com as quais tanto se desidentificava. Talvez ainda não tivesse entendido Perfect Strangers… Precisava de mais Deep Purple…
Era isso o que buscava. Entender de liberdade, desidentificação, de perda de passado, de futuro e de conquistar-se, sem registro, sem saudade, sem solidão clichê…
“Get back, get back, get back to where you once belonged”… Começou a tocar Beatles, ou talvez fosse só a trilha que lhe soprava pensamentos.
Seu pai abrira a janela do grilo mudo-falante, deixando escapar de Pussy a necessidade de guardar algo para sempre; assim como ele próprio fazia, em exercício de vida. Um desprendimento que ela sempre buscou… Seu pai, que nem era seu pai, tão próprio de suas liberdades que nenhum rótulo o suportaria. Seu pai, que nem era seu pai… ensinando-lhe a voar até onde ela realmente pertencia.
“Get back, get back, get back to where you once belonged”…
Só o desprendimento pode tornar um homem o que ele realmente é. Aquela foi a primeira vez em que Pussy Jane ouviu Beatles… apesar de todas as outras, apesar das instruções musicais que seu pai, que nem era seu pai, lhe ensinara a vida toda, que nem era toda, e nem era só sua; e só por isso podia chamar de sua… A vida toda de canções e letras que nem eram canções e letras: eram indicações de caminho.
Então entendeu o que estavam fazendo ali, viajando quilômetros lado a lado, pai e filha, ou Perfect Strangers, ouvindo Beatles e outros insetos… Entendeu que nenhum encontro era para sempre, e só por isso podia se tornar eterno…