Bruneleschi e a Cúpula do Trovão

Menos quatro graus…

A ponta do nariz já havia sucumbido e os dedos haviam perdido qualquer capacidade articular. Polegar opositor? Que piada!

Calma, Pussy Jane… Afinal, era Brunelleschi! Qualquer grau abaixo de zero justificava a escalada à Cúpula do Duomo de Firenze, a cidade do Renascimento!

E não era disso que se tratava aquela viagem a Firenze: renascer?! A Firenze de Dante, Leonardo… Michelangelo… da bisteca… Tudo de que Pussy precisava após o último bolo barato que levara do pintor de parede, autointitulado exímio artista do grafite, com quem tinha iniciado (forse) un piccolo (ma molto piccolo!!) rapporto. O cara usou o pincel (ma davvero molto piccolo!!) e nunca mais apareceu… Que bolo, Pussy Jane! Justo você, que nem come açúcar…

Renascer… Não era o que almejava como publicitária, após a assinar a redação da campanha, no mínimo insólita, para a marca de máscara matizadora para pêlos na orelha “Desamarela que eu gosto”? Ou aquela outra do workshop de auto-ajuda para afro-descendentes da Coach Abamba: “Acredite em você! Matricule-se na imersão Supertição: porque superstição é coisa dos seus antepassados… “. Vafancullo, Pussy Jane!… Justo ela, uma amante de Dante e da boa literatura, das reflexões e da fenomenologia existencialista… Publicitária? Pussy era uma fraude, isso sim!

Não era disso que se tratava aquela viagem ao coração da Firenze, da Via Ghibellina, do Palazzo Gherardi...

Renascer… Após o indelével fim de semana na praia com as amigas (todas casadas e mães), discutindo o modelo de fralda mais anatômico e o melhor calibre de chupeta… Pussy nunca se dera bem com pirulitos, que dizer da chupeta… Freud explica…

Será que sua sina seria viver assim: entre fraudes, Freuds e fraldas?

Uma amante de Dante… que vergonha!

Estátua de Dante Alighieri – Enrico Pazzi (Santa Croce – Firenze)

Não era isso que esperava: renascer das cinzas? Catapultar-se do inferno, em vôo direto aos portões do paraíso? Una vera Beatrice?

O que seriam os 4 graus abaixo de zero, comparados a toda ordem de autoenganos aos quais se submetera nos últimos meses? Afinal, o que é um polegar opositor gélido desarticulado, para quem só mete o dedo no lugar errado?

Polegar opositor, Pussy Jane? Tem certeza? Ah, meu bem, ainda falta muito para chegar lá… Muito mais que os 467 degraus à Cúpula de Brunelleschi que, ainda que insuficientes para exorcizar o último ano (di merda),  seriam a salvação da lavoura. O melhor evento, em meio à tamanha mediocridade consentida e às tentativas de erro.

Definitivamente era disso que Pussy Jane se tratava: uma tentativa de erro. Sottolineato!

Era questão de honra… Iria terminar o ano subindo na vida: 467 degraus, na mais legítima alegoria de elevar-se. Sob os olhos atentos de Dante, Michelangelo, Leonardo e toda renascença: no topo do mundo, mesmo que se sentisse de quatro. Menos 4 graus e mais 467 degraus para jogar, do alto, o ano que passara praticamente em branco. Um Reveillon suicida em meio ao Renascimento…

Olha aí, de novo, o autoengano, Pussy Jane! Por que você tem sempre que tender às falsas associações e distorções de perspectiva? Quer desabar a porra da Cúpula!? Você está se referindo a Bruneleschi! Colocado desta forma parece até que subir os degraus brunelleschianos é par e passo com pular as sete ondas! Só faltava essa: contaminar a cúpula renascentista com a plebe rude da Praia Grande! Cadê o polegar opositor, Beatrice?…

Se decide Pussy Jane! Quem de fato você é, como se vê, em que acredita? Brunelleschi ou Iemanjá? Chega de comprar gato por lebre! Ou você é muito ingênua ou muito benevolente em seus julgamentos! Vai fazer o curso do Supertição com a Coach Abamba… Freud já rompeu-se os cogliones

Dai, dai... que a fila está andando! Quanto tempo mais vai ficar chupando dedo, a porra do polegar opositor? Reclamando dos bolos, das fraudes, da chupeta, dos pêlos na orelha, excessos de açúcar e faltas de oportunidade? Se enganando com pintores de parede e desentupidores de privada? Tem certeza mesmo que quer subir na vida? Sai da merda primeiro!

Uma fila de -4 graus para subir 467 degraus? Tem certeza mesmo, Pussy Jane? Vai encarar? Uma fila de – 0,5 Km por hora? Mais devagar que o ano que você está tentando suicidar! Pular onda não seria mais fácil? E está mais à sua altura…

Se Bruneleschi para você é só uma questão de falta de perspectiva e superstição… Sete ondas e Supertição!

Logo logo você troca Led Zeppelin pela dupla sertaneja Ruy e O Barbosa… Ou pelo funk fuck folk da Amelinha Toca Fogo…

Ah, Pussy Jane, quer saber?  Enfia o polegar opositor no… Cúpula de Bruneleschi! Você pode subir o quanto quiser, vai alcançar, no máximo, o dedão do pé da figura mais rasteira do inferno de Dante…

Afrescos de Vasari e Zuccaril, representando o Juízo Final (interior da Cúpula)

Droga!! Sempre, sempre tinha que se por para baixo!!!

E daí!? Até o dedão da Cúpula seria uma vista incrível, comparada ao desenho daquela espécie de anti-obra contemporânea, do seu namorado pintor de parede… Como era mesmo o nome da obra? “I’m the eggman”... O cara ainda tinha dito que a ideia do nome era autoral, inspirada livremente na obra dos irmãos Grimm (?!!!!). O cara nem sabia quem eram os Beatles…

Mamma mia, Pussy Jane! Como teve coragem de deixar um artista contemporâneo cagar na parede da sala do seu apartamento?! E literalmente: o cara, parafraseando A merda do artista de Manzoni, de quem ele provavelmente nunca ouviu falar, usava a própria “tinta orgânica” para tornar o trabalho mais autoral (além de sustentável, é claro). E o disgraziato era vegano… E  intolerante à lactose… Vegano e intolerante: como ela ia desconfiar que o pintor de parede não era, de fato, de vanguarda? Ou artista?

Polegar opositor, Pussy? Nem precisa: seu próprio opositor é você! Um dedo do meio, e olhe lá!

Quer abrir o baú de recordações da categoria dedo do meio?

Vamos começar renascendo, logo aqui, em Firenze: o maledeto Giovanni Cascamorto. Não era ele que tinha prometido acompanhá-la, em uma visita monitorada, à Cúpula de Brunelleschi?… Claro que você pensou que o cara era interessante. E claro que pensou que era um cara interessante que, talvez, muito talvez, pudesse se interessar por você…

Podia, não podia? Ou não podia? Poderia? Potrebbe ? Poteva? Como mesma se falava!!??

Si parla così: Não, não poderia, Pussy Jane! O cara era um guia turístico, só estava vendendo sua força de trabalho. Nunca ouviu falar em Marx?? A não ser que o Cascamorto fosse de direita e garoto de programa… Mas, não… Não tinha essa bola toda, nem qualquer vestígio de ideologia… E cobrava muito caro por uma noite: teria que ser a Cópula do trovão, né?

Ué?! Mas também, ele era um arquiteto italiano. Não podia cobrar barato!

Sim, arquiteto italiano (sottolineato): desempregado.

Ué, ele não tinha culpa da recessão da Itália. Na verdade, talvez ele nem estivesse desempregado, mas em transição de carreira. E por que não poderia transitar como guia turístico? Afinal, quem melhor do que ele, un vero arquiteto fiorentino, para falar de Brunelleschi?  

Ok, Pussy Jane, você venceu: o fiorentino valia a pena. Mas mesmo para um cascamorto carcamano, ele estava um tanto atrasado para o compromisso da escalada à Cúpula (ou cópula), ainda mais tendo sido pago antecipadamente pelo seu trabalho (altruísta) de guia turístico. Atrasado: uma hora, hora e pouco… E olha que a fila de entrada estava bem lenta… Para conseguir se atrasar, o cara tinha que vir, de quatro e se arrastando, a menos quatro graus.

Ué, vai ver era o fuso… Ou algum imprevisto… Ou ainda, em sua sapiência, o arquiteto, havia calculado a lentidão da fila previamente. Coisas da genialidade fiorentina… Ou ainda, poderia estar reservando um restaurante para, após a subida a Brunelleschi, o casal que não era casal, fosse provar a tal da bisteca fiorentina, que Pussy, claro, nem provaria… Ou provaria, afinal o jantar com bisteca estava incluso no pacote salgado do arquiteto fiorentino…

Ah, Pussy Jane!! Como você foi cair nessa de pagar pacote completo Cúpula + bisteca, para um Cascamorto? Que cazzo você vai fazer com uma bisteca? Sabe quantas calorias tem a porra da bisteca??

Dante, sob a presença de uma pomba-bomba, prestes a desovar uma bela obra contemporânea em sua cabeça… É o que acontece com quem pensa demais, Pussy Jane…

Ué!! Tinha ficado com vergonha de dizer que não comia esse tipo de gordura, ou que a religião gordurofóbica não permitia, ou sabia-se lá que argumento teria que inventar… Bisteca ou não bisteca, preferiu pacote completo, e daí?!

Ah, fanc… Pussy Jane! Quer enganar quem?! Acaba de sair da falta de perspectiva do relacionamento com um pintor de parede sem vergonha, que devia meter o pincel em qualquer buraco; para acabar no ponto cego,  pagando almoço para arquiteto fiorentino desempregado que passava por guia turístico só para se aproveitar da bisteca alheia!? E ainda leva um bolo do cara! Você nem come açúcar, cazzo!! Cade sua dignidade!? Sabe quando vai subir os degraus de Brunelleschi!? Nunca! Essa fila vai levar uma vida e, ainda assim, você não vai ter mérito nem para enxergar o purgatório!

Você ainda está na era da Cúpula do Trovão, do pintor de parede que se acha um híbrido de John Lennon e Pablo Picasso… E do arquiteto que responde por Brunelleschi… Arte contemporânea, un cazzo! Tudo bem que Mad Max já é uma boa referência, mas esse tipo de cara está bem longe de Valhalla.

Va fanCúpula de Brunelleschi, Pussy Jane!

Era por isso que ela odiava arte contemporânea: por causa de caras como o pintor de parede e “I am the walruss”, do arquiteto Cascamorto, que misturava bisteca com Gioconda e vendia tudo num único pacote; como quem visita o Duomo comendo a mesma pipoca de Mad Max e a Cúpula doTrovão!

KABRUMMMMM!!!!!

Pode se derramar em lágrimas, Pussy!! É isso mesmo! O arquiteto não dá a mínima para você! Ele só está rodeando a bisteca. E pode perder as esperanças, que não é a sua! Como um cara, hipoteticamente interessado, deixa uma dama na fila, a menos 4 graus, com os dois ingressos na mão, pagos por ela, e nem aparece? Acorda, Pussy Jane! Quer terminar o ano menos humilhada? Sai da porra da fila e vai embora! Volta para o Palazzo Gherardi, que você pagou com desconto; engole a despesa da porra dos ingressos, que você comprou, e chega de pagar penitência! Pintor , arquiteto, fiorentino, bisteca, Mad Max! Ao inferno de Dante! Vai cuidar da sua vida! Procura um emprego melhor, compra um sapato, faz esse cabelo que está horrível!

– Svegliati!! Svegliati!!! Vada via!! – era Bruneleschi falando, do alto da Cúpula do trovão, a menos quatro graus e mais 467 degraus…

E, de sua perspectiva, Brunelleschi tinha razão. Mas ela não podia ir embora assim… O maledeto do Cascamorto tinha prometido! Ele talvez ainda chegasse… E mesmo que não chegasse, agora seria questão de honra, subir sozinha aqueles degraus! Não precisaria de nenhum arquiteto fiorentino, nunca mais! O projeto arquitetônico do seu destino estava muito bem resolvido (tirando a cagada das paredes do apartamento, é claro).

Ah, calma lá, né, Pussy Jane… Também não é assim, não… Você escolhe mal o guia turístico e todo fiorentino é cascamorto!? A falta de capacidade é sua, não da história da arte!

Dane-se! Ia subir sozinha e pronto! Em época de empoderamento, não podia se render a uma promessa de bisteca, que ela mesma iria pagar! Aliás, já pagara… Pacote completo… Como ela era idiota…

E lá estava ela… A quilômetros luz da Cúpula de Brunelleschi, na fila, redatora publicitária, escrevendo mais uma história sem sentido, de mais ou menos 500 degraus até o purgatório (porque, para chegar ao firmamento, ah, eram outros quinhentos).

Fiorentino comedor de bisteca!! Quer saber? Ainda bem mesmo que o cara não tinha aparecido, pelo menos ela não teve que experimentar o prato! Só faltava ter ingerir 200 kcal por grama, só para contentar Cascamorto. Fora os 180 euros gastos no pacotinho com jantar turístico incluso… Ruminaria a bisteca por anos… O que estava acontecendo com ela?? Nunca, nenhum homem havia mexido no seu bolso. Na bunda até podia, mas no bolso!!!??? Era questão de honra!

– Svegliati, Pussy Jane! Svegliati!! – e Brunelleschi não queria se calar.

Bruneleschi :Vafancullooooo, Pussy Jane!!

Menos 4 graus no purgatório das auto-reflexões e, após 2 horas de fila, alguns passos e estaria aos pés de Brunelleschi… Depois de um fora do pintor de parede que se considerava uma mistura de Ringo Star com Andy Wharol, e do bolo do arquiteto Cascamorto comedor de bisteca, iniciaria sua subida à Cúpula. Isso sim era Valhalla!

E chegando à porta de entrada:

– Signorina… Il biglietto, per cortesia.

E Pussy Jane mostrou o papel que imprimira no hotel.

– No signorina, questa é la prenotazione… Il biglietto é altro.

Pqp, PJ! Pela Cúpula de Brunelleschi! Só faltava essa: tinha limpado a bunda com o papel errado! Não era possível! Tinha saído do hotel com dois impressos: a porra da prenotazione (reserva) e o biglietto (ticket). Como pôde escolher usar bem o ticket de entrada para limpar a bunda como quebra-galho?

– Ma signore, non ho altro…

– Mi dispiace, signorina, non si può salire senza il biglietto.

Merda!! Era culpa do Cascamorto! Se ele não tivesse proposto o pacote turístico Bruneleschi – Bisteca, ela, que certamente não comeria bisteca, não teria que se precaver com um lanche natural de bar. Não teria escolhido o bar mais barato das redondezas que, obviamente, mancava em papel higiênico e não teria sido obrigada a lançar mão do primeiro papel que acenasse SOS na bolsa para acudir o rabo! Se não fosse a falta de perspectiva do arquiteto cascamorto, ela provavelmente teria feito a escolha certa entre o ticket e a reserva, e teria se limpado com a reserva, não com o biglietto ufficiale!!! Ai, que humilhação…

Svegliati!! Svegliati!! Pussy Jane!!!- Brunelleschi era mesmo incansável!

– Ma signore…. Mi dispiace, io… – como explicaria que tinha limpado il cullo com o ticket da Cúpula?! Como? O que o signore que controlava a entrada de acesso às escadarias, pensaria? Iria julgá-la uma inculta, alguém que come bisteca fiorentina como se fosse Big Mac, ou que não sabe a diferença entre o ovo de colombo e I am the Walrus, ou entre o mictório de Duchamp e o David de  Michelangelo!…  

Arte contemporânea é mesmo uma merda!

– Signore, mi dispiace, io…

– Signorina, il presunto biglietto dovrebbe essere ..

– Ma che presunto!!?? Era bisteca! – mas como ele sabia da história da bisteca? Devia estar mancomunado com o Cascamorto! Figli di un cane!

À essa altura Pussy Jane já estava abrindo mão do léxico…

– No signorina! No!!!! Punto e basta! – e dessa vez o cara do controle do ingresso, que provavelmente também devia ter síndrome de autointitulado, um aspirante a Donatello, foi incisivo e estúpido, como só un vero italiano poderia ser.

Pussy respirou toda a fúria dos 467 degraus, o biglietto da Cúpula, o cu no biglietto, o purgatório, o arquiteto que queria ser rei, os aparadores de pêlo, o pintor de parede, a Cúpula do trovão e, alcançando Valhalla, vomitou  a bisteca (con tutti i contorni):

– Ma chi cazzo, sei tu!!?? Bruneleschi?! – e enchendo a mão do léxico perdido, virou o tapa mais empoderado na faccia do guardião das portas que levavam à Cúpula. Um tapa tão sonoro que acordou os sinos do Campanile di Giotto

Campanile di Giotto - Giotto di Bondone

Os óculos do fiorentino da porta de entrada da Cúpula saltitaram, em câmera lenta, aos badalos dos sinos e olhos atônitos da fila, que continuava a se estender por quilômetros, abarcando amadores de arte, críticos, pretensos artistas, ou simples mortais como ela, em um dia ruim, a caminho de algo, fosse da Cúpula de Brunelleschi ou Valhalla… Em juízo final ou final de juízo.

E Pussy Jane pegou o papel da prenotazione que não era o bilhete de entrada com que acudira il cullo, virou as costas à fila, ao arquiteto, ao pintor, e até mesmo a Brunelleschi, sabendo que estava subindo, aos poucos, seus degraus, e que, de quatro, ou a menos 4, um dia, chegaria lá. E Dante, certamente, a reconheceria.

Será mesmo, Beatrice?…

Ops… faltou a pomba…