Eclipse

Pussy Jane escureceu… E era dia. Uma das mais belas manhãs primaveras. E era setembro, mês de independência, de 11, de guerra, de flores e armas, terror… Não, não era primavera. Era cinza em alguma estação… Cinza sob o mais belo Sol, equivocadamente invernal.

Não deveria amanhecer em dias de inverno e cinzas… Era audácia, violência. Não deveria amanhecer quando a alma estava sem cor. E o corpo pólvora, como se em verbo: polvorar. Como se um verso em que o Sol-amanhecer surgisse, equivocadamente invernal, incendiando o que era mortal, em rima… O Sol, em chama, cremando o que já era cinza.

Pussy Jane escureceu… Como, diabos, podia ser dia? Um dia de calçadas iluminadas, pessoas ocupadas, passos passageiros, em celulares, dígitos, erros e necessidades de acertar. Automatizadas, autônomas, autômatas, empregadas, infelizes. Tudo o que era certo ou errado desfilando, figurante, meio desfigurado. Afinal, era dia, e Pussy estava cinza…

Como se colore mesmo a cena naquele programa? Control o quê?

“Control C”, “Control V”: e a vida se copiava cotidiana, independente da cor, independente do setembro, do dia, do mês, da data comemorativa. Ninguém via isso? Ninguém via? O mundo estava cego pela manhã azul, mas não sabia que aquilo era só photoshop… Parecia ninguém sabia, apenas ela.

All that you touch, all that you see, all that you taste, all you feel…

Mas que droga! Não queria guardar segredo, não queria roubar para si a tristeza de enxergar as coisas como eram: a manhã disfarçada de azul, os passos disfarçados de assertivos, as pessoas disfarçadas de gente. Que sente ou sente muito, que se olha, que se fala, que se importa com as manhãs cinzas de alguém, apesar de ter as suas em tons de azul… Como era mesmo o comando??

Queria “Control Z” para desfazer seu senso crítico, desdizer as visões apocalípticas elípticas, recorrentes, de um humano que não se é. Não queria essa tristeza de saber só para si… Queria dividi-la: twitter, facebook, fibra ótica. Pussy Jane escureceu e estava enxergando melhor do que nunca.

 “All that you touch, all that you see, all that you taste, all you feel…”

E lembrou da música… Era Pink Floyd. Qual o nome mesmo? Naquele momento a letra parecia tão sua, autoral… Tão melhor que os slogans idiotas que tinha que inventar como redatora publicitária, vendendo soluções de mentira para vidas desembrulhadas da verdade. Embrulhou o estômago… Ela mesma havia embrulhado a alma, cuidadosamente, para um presente de que se queria esquecer. Um presente de se programar para futuro… Que presente era aquele? Que passado resultaria? Olhou para trás, e era cinza… Sim, o passado era cinza, como o embrulho de papel e a manhã azul… and all you create , and all you destroy, and all that you do, and all that you say…

Como era mesmo o nome da música? E achou inocentes, infantis, suas tentativas de lidar com a alma que era cinza escura e jamais conseguiria aprender um mundo que pintava as manhãs de azul no photoshop.

As manhãs eram cinzas, droga! De setembros em guerra, e terror nas esquinas, de homens comendo lixo e traindo irmãos. Ninguém via? Ninguém dividia? Mas o cinza se multiplicava e parecia só ela sentia. Sentia muito…

‍”All that you need, and everyone you meet, and you slight and everyone you fight”

E como tentara… Como tentava ser de um normal que se diz aceito… Amante do comum, das unhas a fazer, dos vestidos de noiva, das mãos dadas, das contas a pagar, dos cumprimentos “oi e nunca mais”. Como apagar de si que o comprimento da vida real não se mede por manhãs de photoshop, que o cumprimento de uma vida não admite o superficial. Ainda não se havia inventado um modo de pagar o preço pelo que não se viveu de verdade.

“and all that is now, and all that is gone, and all that`s to come,
   and everything is under the sun”

Pussy Jane tentava entreter-se, tentava entender-se, mas o cinza era tão forte, que já se tornara mais belo que a manhã azul. Mais promissor de um amanhã azul. Ela enxergava, e talvez só isso bastasse. Talvez um dia soubesse o que fazer com aquilo… talvez trocasse mesmo, os slogans idiotas pelo sonho de escrever letras suas, tão suas quanto aquela, Pink Floyd que não lhe saia da cabeça… Mas hoje, numa manhã azul photoshop… Hoje, era só dia de contemplar: a tristeza, o cinza, as pessoas disfarçadas de gente.

Pussy Jane escureceu em uma manhã de Sol…

Não precisava mais lembrar o nome da música: era eclipse. Ela mesma tinha escrito…

“… everything under the sun is in tune, but the sun is eclipsed by the moon…”

“There’s no dark side of the moon really. Matter of fact it’s all dark.”

Pussy Jane escureceu e era dia…

Umas das mais belas manhãs primaveras…