Sobre as Rodas, a Bicicleta e a Vontade de Voltar

Talvez tenha sido o Dia dos mortos… Ou as faltas de vida, ou a mania de pautas. Talvez tenha sido tudo junto… Pussy Jane acordara sem saber o que faria da pauta da vida. Literalmente, e com todas as analogias gramĂĄtico-morfolĂłgicas cabĂ­veis.

NĂŁo que nĂŁo soubesse de si, seus motivos ou caminhos; atĂŠ sabia, na maioria das vezes. Mas o que se faz do dia em que a sanidade suicida nos visita para avisar que o tempo acabou? Acabou o tempo de esperar pela vida que virĂĄ, de chorar de canto de retrovisor, de estender as perdas da mesma corda com que se ata os punhos por medo de mudar.

E jĂĄ se foi o tempo de esperar pelo tempo que se foi…

‍

‍Pussy Jane, mascando sua dor revisitada, do mesmo chiclete sem gosto que se mascara do sabor de saber que um dia foi doce… Pussy Jane, inconformada de sua dor quase reconfortante, porque habitual, previsĂ­vel…

E Pussy Jane feriu-se; que a dor, no fundo, era cortante como navalha. Assim como a pauta da vida e suas morfologias gramaticais enganosas: a dor nĂŁo era reconforto, era corte.

‍

Pussy socorreu-se nas gavetas de passado. Devia haver algo que a fizesse parar de sangrar memĂłrias, que a fizesse parar de perder o tempo que era cor, que era sangue. O tempo que lhe era vital.

Algo nas gavetas de sua histĂłria que a fizesse mais viva naquele dia de mortos.

E uma foto, do mesmo papel de cumprir o papel de selar os instantes, cada um e todos eles, como algo pretÊrito. Uma foto, do mesmo papel de embalar seus sonhos infantis e cantå-los em palavras doces de ninar. Uma foto, do mesmo papel, que era só um papel mas não era. Um papel que era mortal porque rasgava-se, indelÊvel, no peito de sua menina, que era o mesmo peito que ela levaria para sempre, fosse ou não Dia dos mortos. O mesmo papel de abraçar os seus.

Uma foto, estancando a dor de tudo passar.

“Calma, Pussy, tudo passa…”

E de repente, o avĂ´, assoprando-lhe o joelho esfolado da primeira tentativa de andar na bicicleta, sem as rodinhas capazes de amparĂĄ-la. E Pussy, em lĂĄgrimas superfaturadas, doendo de uma dor que nem era dor de joelho, era dor de orgulho: um primeiro fracasso por ter derrubado-se da bicicleta. Justo ela, que queria ser competente em tudo; justo ela, derrubada e sangrando tempo em seus joelhos inflexĂ­veis de aflição. “Calma Pussy, tudo passa… “

Nem o avô nem ela sabiam que a frase não era conforto; a frase escondia a sentença mais triste e dolorida do tempo. Mais vermelho que sangue, mais preto e branco que cinza, mais intoleråvel que o fracasso pela queda da bicicleta.

E talvez o avĂ´ e ela soubessem; e por isso o choro inconsolĂĄvel, por isso a queda, o sangue, a bicicleta no chĂŁo de pneus estacionĂĄrios que nunca voltariam atrĂĄs.

A foto do avĂ´…

E talvez fosse sĂł o Dia de finados ou  nĂŁo saber o que fazer da pauta da vida. Talvez fosse a vontade de andar de bicicleta, ou sĂł contar para o avĂ´ que ela sabia viver sem rodinhas, apesar de saber que, lĂĄ no fundo, ainda precisava de amparo.

Ou talvez fosse sĂł a voz do tempo “Calma Pussy, tudo passa…”, sĂł a voz do avĂ´ assoprando-lhe os joelhos que, Ă s vezes, pareciam desistir. Calma Pussy, tudo passa…

O tempo soprando-lhe as alternativas de caminho: sedar o passado para que o presente pudesse montar na bicicleta sem rodinhas e ser livre.

A foto do avĂ´… O Dia dos mortos… Às vezes a falta de vida… que todos sedam, esperando que a dor suporte sozinha as feridas da desistĂŞncia.

‍

‍Pussy colou a foto do avĂ´ em algum lugar no peito, que era onde mais sangrava saudades, estancando um tanto do sangue vermelho que, em cinzas, escorria pelos dias, intermitente, insistente, vingativo. Colou, como se faz com band aid barato, um remediar instintivo, uma certeza de que quando o curativo caĂ­sse, nĂŁo haveria mais ferida; apenas a pele refeita, lisa, de atĂŠ se esquecer qualquer corte. Como se faz com band aid barato: Calma Pussy, tudo passa… Tudo passa…

“Mas engraçado, vĂ´… Por que algumas feridas nĂŁo cicatrizam?”.  E a dor se transforma em um punhal mais fundo: saudades.

“How I wish, how I wish you were here… We’re just two lost souls swimming in a fish bowl, year after year. Running over the same old ground. What have you found? The same old fears… Wish you were here…”

Pink Floyd sempre tinha razĂŁo…

‍Talvez tenha sido o Dia dos mortos, a foto do avĂ´, a vontade de andar de bicicleta, a vergonha pela queda, a voz cortante do tempo, Pink Floyd… Pussy Jane jamais entendera tĂŁo bem que a vida nĂŁo precisava de pauta. Talvez tenha sido a presença indelĂŠvel de alguĂŠm que se ama… Era esse, Pussy Jane, sempre seria esse, o significado da vida.


‍