Going Rome

E lá estava ela… Absolutamente em casa: tão longe, e perto demais de si mesma; o que muitas vezes parece inevitável…
“É exatamente quando a distância dos algos que nos escondem se faz imposta, que não há espaço para “eus” impostores ou impositores de verdades apreendidas aprendidas. É só quando se está só, que nenhuma máscara-personalidade se faz possível, e nem provável…
É bem provável que só se seja si mesmo à beira do abismo, num sentido de não haver como recuar da possibilidade da escolha entre saltar ou retroceder, porque uma vez que se consegue enxergar que há escolha, o salto já foi dado; se está muito presente para que se minta, até para que se sinta. É instinto e só.
E só se é instinto, num lá dentro que já longe de tudo, porque tudo já é lá de dentro. À beira do abismo se é uno com o mundo, em suas únicas e prováveis direções: o fim.”
Puta que pariu, hein, Pussy Jane!!… Filosofia nessas horas não cola, ou gruda demais… Vê se se localizar no mapa turista porque senão, além de perdida em hipóteses e faltas de argumento, você perde também o ônibus para o hotel.
Só faltava essa: de um recém tomado pé na bunda a dormir ao relento… Devia ter ficado no Brasil!

Pelo mapa, o hotel nem era longe dali, mas melhor se apressar; uma longa exposição ao frio da noite romana a menos de seis graus, seria muito mais drama do que o “ser ou não ser” desestruturado que ela estava tentando desenvolver, rascunho, no folheto “boas vindas” que recebera em Fiumicino, aeroporto da cidade.
Roma era amor de trás pra frente: casais de mãos dadas, às luvas; bares e pequenos cafés espalhando mesinhas sobre as calçadas rusticamente apertadas, regadas a ciocolatta calda e canutti con pana… Ah, canutti!! Que saudades da nonna Tormenta di Poggiomarino…
“Figlio di un cane!!”- era nonna se referindo ao nonno Michelle, toda vez que ele chegava tarde para o almoço do domingo (que para ele, retornando da noitada, era cedo até demais). O nonno jamais entenderia a histeria das mulheres, sobretudo das italianas…
A imagem dos gladiadores romanos, nonno e nonna, fez com que Pussy Jane, apesar dos casais de mãos dadas e da ciocolatta calda espalhados pela rua, entendesse que nada era tão romântico assim.
Talvez todos os casais, mesmo aqueles mais aparentemente aconchegados de si, fossem todos, gladiadores: nonno e nonna. Pussy recordou a foto de cabeceira de cama dos dois: sorridentes como se feitos um para o outro.
Engraçado que ela sempre achara aquele retrato tão… tão… Retrato.

Olha lá, sentados à mesa do Café Eliseo: o cara de mão dada com a namorada e piscando para a garçonete! Figlio di un cane! Pussy observava, em sua viagem de ônibus a caminho do hotel, a reiteração da imagem do retrato “nonno e nonna”.

Roma talvez fosse, literalmente, amor de trás pra frente. Só um jogo de palavras como aquele, de ler invertido, que ela costumava jogar quando criança, e que a fazia parecer mais inteligente, ou com algum dom especial; afinal ninguém entendia do que estava falando…
Crescida, Pussy descobrira que as pessoas criam nessas coisas também quando adultas: inventam saberes inúteis para se sentirem superiores a algo ou alguém. Ok, o jogo de ler trás pra frente tinha até lhe sido útil, já que lhe conferia, mesmo às escuras, uma possibilidade de dom. Mas será que ela era realmente mais inteligente por isso? Ou apenas mais estúpida por se sentir superior, inventando um saber de mentira? Era uma idiota mesmo… Que propósito em ler o mundo de trás pra frente?? Ou de ponta cabeça??
Ah, Pussy Jane, talvez não fosse assim de todo mal entender o avesso das coisas. Se não fosse o jogo de palavras, como você chegaria à tal conclusão de que Roma, naquele instante, era e deveria significar apenas o amor de trás pra frente: a batalha nonno x nonna, apesar do retrato mentiroso; o namorado de mãos dadas desejando apalpar a bunda da garçonete? Como você leria Roma em letras corretas em um folheto que se escondia em boas-vindas, se não soubesse entender que a vida era do avesso?
Olha lá, a vida é o cara piscando pra garçonete! Ele só finge que tem uma namorada. Anos dali, ele se transformará no nonno filgio di un cane; e a moça, na nonna que se desfazia em lágrimas de molho de macarrão, todo domingo, todo santo domingo, após a missa… Pensando bem, a moça merecia algo melhor do que o papel de nonna; a nonna merecia muito mais do que molho de tomate. Elas um dia já haviam encantado-se com o cardápio de possibilidades…
Eram umas tontas, isso sim! Tutte pazze!! Se tivessem olhos mais atentos e não acreditassem nas lorotas de quem fala o mundo de trás pra frente; se soubessem, como Pussy, ler os avessos, talvez enxergassem que os patifes que lhes ofereciam as mãos (nonno que perdoasse Pussy Jane) e uma aliança sem compromisso algum (exceto financeiro, com a loja que a vendera à prestação), cobiçavam, na verdade, o rabo da garçonete…
Cazzo!! Da garçonete que devia visitar a Pietá de Michelangelo para fazer a selfie da semana… Cazzo, nonna!! Como você não enxergou a merda toda?? Questi filgi di un cane que enfiassem o canutti no próprio rabo! Ou no rabo da garçonete, se assim lhes fosse mais recomendável…
E o ônibus de Pussy estacionou na Via Nazionale: seu destino final, ao menos naquela noite. E não era bom saber disso: que o destino podia durar apenas uma noite e jamais ser eternizado em retratos que eram apenas retratos, que eram apenas mãos dadas apertando a bunda de uma garçonete qualquer?
O destino de uma noite e só! E depois poderia se fazer outra, e mais outra, e mais outra viagem…
É Pussy Jane, às vezes os abismos são apenas trilhos de metrô: só mudança de direção. Se a nonna soubesse… A vida é muito mais Roma do que um pé na bunda e um marido atrasado no almoço de domingo. História, catacumbas, ruínas e concreto. Talvez os finais não fossem mesmo nada, comparados às batalhas do Coliseu. E as ruínas, apenas histórias da raccontare, pedra sobre pedra, de um concreto que nunca existiu; era apenas porta-retrato em cabeceira de cama de casal.
Tomara a moça do Café Eliseo, tomando ciocolatta calda, entendesse isso antes de descobrir que o nonno era um grande figlio da… puttanesca. Ou talvez nem fosse… Talvez ele simplesmente não tenha visto o encantamento nos olhos da moça da ciocolatta calda, que se tornaria a nonna do molho de tomate curtido in padela não menos que seis horas, todo domingo, esperando o marido tornar ubriaco de uma noitada fellianiana.
Não havia desculpa: o encantamento da moça ou da nonna, só não foram vistos porque o nonno e o namorado cascamorto estavam piscando pro rabo da garçonete que fazia pose pra selfie no facebook… Selfie com a Pietá de Michelangelo… Una putana! Que com certeza nem sabia cozinhar! Spaghetti alla puttanesca era fácil!!
Pior é que o rabo da moça do Café Eliseo (e o da nonna Tormenta) deviam ser muito melhores que o da garçonete, que nem devia entender nada sobre molho de tomate de seis horas… Mas é a tal da síndrome da pomba: cagar na cabeça alheia às escondidas. O nonno e o cara deviam se sentir melhor consigo mesmos sabendo que passavam alguém para trás, nem que os tais alguéns fossem as mulheres que lhes davam as mãos (e lhes cozinhavam o molho,as tripas, o rabo, e lhes descascavam a banana).
Pensandoci benne, ler de trás pra frente e nas entrelinhas, era muito digno! E absolutamente inteligente! Parabéns, Pussy Jane: você realmente tem um dom!
Então, da próxima vez, ao invés de ficar choramingando pelo leite ou pé na bunda derramado, antes que a sua despenque,  em homenagem à nonna Tormenta e à moça desconhecida do Café Eliseo tomando chocolate quente (e no rabo allo stesso tempo), manda o seu próprio pseudo namorado cozinhar o carbonara ou apalpar alguma garçonete que o faça.
Tá, tá!! Chega, que saco!  Não dá pra curtir uma tristeza profunda, um sentimento de perda, um luto, uma rejeição, como qualquer pessoa comum?!! Tem que sempre existir um senso acusatório, auto-depreciativo, uma culpabilidade intrínseca, uma…


“VAFFANCULO, PUSSY JANE!! ” – dessa vez quem falou foi Mosè, do alto de sua estatuária de mille metri, na Fontana dell’ Acqua Felice, na Piazza San Bernardo, logo ali, próximo a via Nazionale, onde se deitava o destino de Pussy Jane naquela noite. Pelo menos naquela noite…
“VAFFANCULO, PUSSY JANE!!!” – com uma voz que atravessava mares e montanhas, e fazia brotar água da rocha esculpida em mármore travertino, grave a austera, como pé na bunda algum, por mais dolorido, jamais poderia ser.


“VAFFANCULOOOOOOOO!!!”
E um vento da Roma noturna de menos de seis graus, com toda sua história, ruínas, glórias e batalhas, inundou a parca humanidade de Pussy e sua filosofia barata de quem tem os melhores olhos para o cara que pisca para a bunda da garçonete… E que piscasse para bunda da rei de Roma, se ele andasse de rè! Bela merda! Não era a sua e pronto; punto basta! isso já bastava para desqualificar, tanto a bunda da garçonete quanto o cara… E anche ré do rè di Roma.
“VAFFANCULOOOOOO” – Mosè, com a precisão que só os deuses poderiam ter…
“CULOOOOOOO”

‍E Pussy Jane não teve como não obedecer: recolheu sua ingenuidade vitimesca, tratou de por o rabo bem baixo, sob as ordens de Mosè, e jurou a si mesma que, dali em diante, andaria reta e digna, sem olhos para garçonetes, casais de mentira e meias verdades que significavam absolutamente nada!
Fez como lhe disse Mosè: um sonoro VAFFANCULO aos que não liam o mundo como era, de trás pra frente e às avessas!
Um revigorante e verdadeiro pé na bunda dos deuses, e jamais se sentira tão em casa. Aquela noite seu destino era estar precisamente ali: às barbas do profeta!

Sentiu-se como em Noites de Cabíria, só um tanto menos ingênua, e legitimamente Felliniana. Dona de suas todas noites que deitariam: hoje, ali; amanhã, quem sabe… Sentiu-se dona da verdade que sempre soubera ser a única, mas que tentara, a vida toda, encaixar nos porta-retratos de cabeceira dos casais gladiadores: não existiam felizes para sempre.
Nunca um pé no rabo lhe dera tamanho vigor!
E resolveu que não deixaria a moça do Café Eliseo e a ciocolatta calda acreditarem nos porta-retratos, nem nos molhos de tomate ou garçonetes de sorriso (e outras partes) arreganhados. Recuperou o elo perdido entre a Pussy Jane de infâncias que acreditava que suas tranças a levariam aos céus, e a adulta que, não fosse Roma e as barbas de Moisés, ainda estaria vitimizando-se por mais um pé no rabo, mesmo sabendo que relacionamentos, em sua grande maioria, falavam em letras de trás pra frente, e já começavam terminando. Em Roma e na vida, todo amor que Pussy poderia experimentar estivera e estaria bem ali: o amor próprio que não se retrata em selfie garçonete, ou em retrato de cabeceira; se vive em mapa, mochila e inesquecíveis noites fellinianas.
Pussy saiu em disparada em direção ao Café Eliseo, onde se encontrava o tal casal que logo se transformaria, tal nonno e nonna, em porta-retrato de cabeceira. A moça (ou talvez fosse a nonna) deliciando-se de chocolate quente, um perfume doce misturado à boca do forno de biscoitos de amêndoa, récem assados, desses delírios gastronômicos que só a Italia pode ter. A moça (só podia ser nonna Tormenta) satisfeita: chocolate e mãos dadas. O rapaz (só podia ser o nonno), de luvas e intenções escusas, ainda pensando no rabo da garçonete… E a Nonna com um rabo daquele, cozinhando com o molho de seis horas de domingo… Mamma Mia!!!
Pussy Jane, a menina das tranças que subiria aos céus, temperou, com as ordens do profeta, séculos e séculos de ruínas sentimentais e vitimizações, seus, de sua nonna e de todas as mulheres que ainda criam em cardápios de receita única e; dentre todas as escolhas, diante do abismo, resolveu saltar: cutucou o ombro do cara que segurava a mão da namorada, ao mesmo tempo em que apertava a bunda da garçonete, esperou que ele virasse e, num tom de voz que ela imaginou em Mosè nella Fontana della’acqua felice, gritou em letras esculpidas a mármore travertino com seu melhor italiano:
VAFFANCULO, FIGLIO DI UN CANE!! – e lhe virou o tapa mais bem dado da história de Roma, aquele que a nonna deveria ter esculpido há séculos, aquele que a moça do chocolate quente talvez desse dali a 30 anos, muito depois que o namorado cafajeste oferecesse-lhe uma aliança que não significava, nem ao avesso, nada; quando já seria tarde demais para descobrir que uma sua vida de ciocolatta calda esfriara.


E os dedos de Pussy Jane ficaram  estampados à fogo na cara de pau do namorado da moça (ou o seu? ou o nonno?), enquanto ela calmamente dava as costas à cena, orgulhosa da missão cumprida. O cara (e o nonno) deviam saber porque estavam apanhando: molho de seis horas, o cazzo!
A garçonete fugiu do Café Eliseo, mas ainda teve tempo para posar para uma selfie (seria a selfie da semana!! quase quase com o mesmo número de curtidas daquela da semana passada, em que ela chupava o dedão de Netuno na Fontana di Trevi).
A namorada, a tal moça do chocolate quente, meio nonna, meio Pussy, repetiu o “figlio di un cane” récem proferido e esbofeteou o namorado também (apesar dele não ter tido a dignidade de lhe oferecer a outra face). Ela sabia que, no fundo, já devia ter desistido da vida de trás pra frente e outras ingenuidades que aquele e outros caras do mesmo material perecível de caráter poderiam oferecer. Saiu liberta, tal Pussy (e nonna Tormenta vingada); protagonista de seu próprio filme Fellini: uma panorâmica no leite derramado, açúcar e chocolate, e como fundo-cenário, cúmplice, o café Eliseo. Registrando aquele momento  inesquecível, de se ler a vida de trás pra frente em letras claras e de dali em diante. A moça sabia que aquele não era o chocolate quente que merecia; quando provasse um de verdade, reconheceria.
E Pussy Jane foi “in culo”, como lhe cumpria o profeta, com sua dignidade reiterada, resgatada, reintegrada, como somente Roma poderia ter-lhe escrito. Nunca um pé na bunda fora tão “levá-la de volta para casa”: Roma, de onde ela jamais deveria ter saído, almeno quella notte. As outras, cada qual de seu próprio destino…
De um simples porta-retrato, a um filme de Fellini… Quem diria, hein, Pussy Jane? Cabíria aplaude…