Zefirelli, San Zeno e o vestido Capodanno – na Arena di Verona, em 2 atos – Parte I

Verona em seu inverno digno de un capolavoro Zefirelli, impecável em sua fotografia. Uns resquícios de neve rasa na tarde, quase noite, melancólica e belíssima, tendo por cenário a Arena, bruta, estonteante, que observava o último dia do ano tal fosse fim do mundo.

E talvez a Arena estivesse com razão…  

Sua história de pedra, sólida e imponente, contrastava com uma Piazza Bracointemporânea, em promozione Capodanno: abarrotada de turistas e suas pressas vorazes pela melhor oferta pós Natal, renascidos em sua impetuosidade líquida de consumo.

A Arena entristecia, impotente, consumida sob forma de ticket barato e, ainda assim, tendo que disputar euros com produtos de qualidade duvidosa (souvenirs, chaveirinho, pau de selfie)…

A Arena de Verona, vendida, em sua beleza inescrutável.

Arena di Verona

Na verdade, eram duas Veronas: Zefirelli e Ronald MacDonalds…

E, infelizmente, contrariando todo e qualquer princípio sócio-histórico que lhes valesse equivalentes, ambas as realidades (luxo e lixo) apeteciam Pussy Jane.

Calma lá! Nem tanto assim: Pussy não comia hamburger, adorava Romeu e Giulietta, e tinha trauma de palhaço, cebola e picles no pão com gergelim (Pussy não comia mais pão). Ou seja, sabia muito bem distinguir as duas Veronas…

A questão não era a equiparação inconsciente, mas a assunção resignada e assentida de deixar-se levar também pela Verona nada tradicional, fajuta e not anyway made in Italy, por culpa da moeda.

O epicentro do conflito entre o capitalismo gutural barato e exploratório, e a aura de que falava Benjamin tinha endereço: a desvalorização perene da porra do real tupiniquim.

Como ela optaria pelo vero spresso italiano Illy a 5 euros, se o café da rede de fast food instalada cuore di una Verona enfartada saía-lhe pela metade do preço (e também do sabor, é claro)?

Às vezes, pobreza não é apenas questão de espírito…

Um café na Illy custaria-lhe o almoço mozzarella di buffala e pane italiano no mercado mais próximo. Não tinha conversa: na conversão, era descobrir um santo pra vestir outro… Couvert o Colazione. E Managgia la mancia!!

Então ela sobrevivia assim, aproximando, para além do léxico, lixo e luxo. Un colpo al cerchhio e altro alla botte!

Que Walter Benjamin e o Papa la perdonassero: havia cometido uma heresia. Com o dinheiro do troco do café aguado que acabara de tomar, escondendo de si mesma o mau gosto, comprou-se, pequena indulgência, uma réplica da Arena inabalável de Verona…

Tomara o indiano que lhe vendera a obra-prima não contasse para ninguém.

“Fare l’indiano, Pussy Jane… Fare  l’indiano…”

Peekareta decepcionada com o mau gosto de Pussy Jane

E com a réplica da Arena na bolsa, bem guardada para não correr o risco de ser repreendida por Benjamin, Pussy seguiu pela Verona fria das vielas irresistíveis em seus apelos publicitários. Tentou desviar o olhar de tudo o que pôde; afinal, era publicitária, devia saber que aquilo não passava de um monte de bobagem.

“Ah… Então tinha sido como publicitária que comprara a porra da miniatura da Arena?!! Como pôde, Pussy Jane??? Economizar num café que mais parecia água rala de escorrer feijão e gastar com uma merda made sei lá onde? E bem ali, a alguns passos da Arena?”

Só ter sido culpa da Piazza Bra e seu contraste entre o essencial atemporal e o supérfluo digestivo…

Digestivo? O picles do Ronald MacDonalds?

Piazza Bra era a Piazza Bra: Pussy é que era assim, dúbia! Essa mania maledetta de jogar a culpa no mundo, na história, nas entrelinhas. Comprou a porra da arena kitsch porque quis e pronto! Assume!

Pussy sentia-se, sim, culpada, turista, brasileira. Só podia ter vindo mesmo da América Latrina e, disso, precisava redimir-se: iria comprar um ticket para visitar a Arena. Mesmo que o já tivesse  feito umas 10 vezes, essa seria por um bom motivo: livrar-se da culpa pelo mau gosto adquirido linhas abaixo do Equador.

Ah, Pussy Jane, seus antepassados jamais deveriam ter deixado a Itália…

Ah, sim! Essa culpa era mesmo deles!

Pronto: lá vai a mesma ladainha! A culpa é de Mussolini, do Garibaldi, do Portinari, do Leonardo da Vinci! Compra logo a droga do ingresso e não enche o saco, Pussy Jane!
Foi o que fez! Ainda que a Arena já tivesse servido ao antigo pão e circo, equiparando-se às distrações de café barato das lojas fast foda e das bugigangas que pipocavam as ruas da cidade, ainda assim, seria, sem dúvida, o dinheiro mais bem gasto para aquela sua tarde de final de ano.
Diante da argumentação, Benjamin teve que intervir:

“Nem vem Pussy! Nem o pão de circo dos séculos gladiadores justificam essa cagada homérica que você fez: dez euros na porra da miniatura, às custas de um café de palhaço, Macdonalds, em Verona!? Ma va fanculo!”

Peekareta interpreta Walter Benjamin

Puxa! Benjamin também parlava italiano! Pussy jamais imaginaria… O que não se aprende com um ticket de visita à Arena de Verona…

Ah, a Arena! Esplêndida, sem vitrinagem alguma! Aquilo, sim, era Verona, e valia cada um dos 10 euros do ticket (o mesmo preço da miniatura barata..).

A aura estava ali, na experiência!

Benjamin, com certeza deve ter experimentado uma baguete, un cannolo, una bresaola…

E assim, na tentativa de fazer render cada centavo do ticket, e dispersar pensamentos consumistas que a levariam, saltitante e com cartão de crédito alucinado, a Via Mazzini das magazines e promoções, Pussy tentou gastar mais tempo do que o necessário dando voltas e mais voltas na Arena, refletindo sobre gladiadores, o Império romano, os leões, o imposto de renda, a César o que é de César… Reiterando seu padrão incansável de ruminar sempre as mesmas questões e estendendo o custo-benefício dos dez euros que gastara no ticket, a fim de compensar os dez outros que disperdiçara na miniatura… Um princípio moral da economia, talvez…

Benjamin retrucou, novamente:

“Não, Pussy Jane: é o capitalismo como religião!”

Puxa! Ele também falava português!

Horas e horas da tarde, dando voltas na Arena, na história, nos séculos dos séculos… E, dali mesmo, do mais alto degrau redentor da Arena, tendo “O céu por testemunha”, viu Nero incendiar Roma, le Crociate, a Reforma, a Queda da Bastilha, o homem chegar à Lua, Ben Hur, a filmografia de Russel Crowel… Do Gladiador a Robin Hood, passando por Noé e a Múmia! Uma banho de cultura, ainda que Hollywood…

Na verdade, Pussy, atentando-se às tamanhas elocubrações, estava tentando solucionar o último grande dilema de seu calendário cristão; aliás, bastante secular: aonde passaria a virada do ano? Todo esse epílogo sócio-histórico autoreflexivo etnográfico das voltas Arenas para esconder um único grande (e estúpido) problema que a corroía: o local em que passaria a virada e, mais importante, quanto isso lhe custaria…

E o pedômetro mancando 50.000 passos. Círculos e círculos de arena secular, sem sair do lugar. “Mas não era essa, afinal, a sina da humanidade?”

Existencial e medíocre, Pussy continuava no centro de Verona, no ápice de suas dúvidas, perdendo tempo e tentando transformar os 10 euros do ticket em maior custo benefício. Pena lembrar pouco das aulas de economia, com sua persistência, teria decifrado o Código da Vinci.

Nem tanto, Pussy: o rombo financeiro era mais largo que o diâmetro da arena:

Pussy queria ir a uma festa que lhe custaria 50 euros (com direito a um jantar que provavelmente não desfrutaria, afinal alface não era cardápio Capodanno em lugar algum), e como, muitas vezes acontecera-lhe em épocas de surtos promocionais, tinha apaixonado-se perdidamente pelo vestido de 100 euros na vitrine da Capuleto Dresses. Uma loja chinesa naturalizada italiana, in Via Capello, bem próximo a Casa di Giulietta.

Mesmo se Walter Benjamin non parlasse italiano, nem português, era fácil deduzir: festa mais vestido contabilizariam 150 euros, exatamente o dinheiro justo que ela teria para os últimos 3 dias em Verona. Como poderia equilibrar a conta? Pão e Circo? Pão e água? Ir na festa sem o vestido? Ou o vestido sem a festa? Ir à festa e tentar encontrar um italiano que lhe pagasse os próximos 3 dias em refeições? Comprar outro vestido barato, uma réplica da réplica? Comprar 30 mozzarelas e 10 cafés de palhaço, no McDonalds? Ou comprar a cafeteira Bialetti em promoção e, por fim, conseguir beber um bom café a um preço exequível? Ou…

Que porra ela faria dos seus últimos 150 euros e 3 dias em Verona?? Hiperfaturar o tempo como estava fazendo na Arena? Dez euros por 5 horas, andando em círculos: cada círculo custara menos que centavos! Se soubesse como traduzir essa brilhante lógica da economia criativa às contas do vestido, seria uma mulher realizada em seu vestido Capuleto, com ou sem Romeu.

E Arena já atordoada, girando, girando, girando à velocidade dos pensamentos frenéticos e confusos de uma Pussy e suas expectativa de Capodanno, com um pedômetro entorpecido que já marcava 60.000 passos.

Ué, não era mesmo, uma ótima forma de refletir e queimar calorias?

Por isso Nero tinha incendiado Roma! Ele não a aguentava mais!

Puta que pariu, Pussy Jane!! não sobrou nenhum gladiador pra contar história! Decide sua vida de uma vez!

“Vai comprar a porra do vestido!”. Dessa vez foi Nero quem ordenou e ela teve que acatar, enquanto Benjamin consentia, assim como Nero, completamente atordoado.

Peekareta interpreta Nero

Saiu decidida da Arena de Verona, em um frio cinematográfico Zefirelli, naquela véspera Capodanno que, prometeu a si mesma, seria definitiva em sua vida.

Foi em direção a Via Capello, com seus 150 euros no bolso (o orçamento total para os últimos 3 dias). Até pensou em desistir, mas Nero… Nero era fogo…

E o vestido não lhe saía da cabeça. Imaginou-se Giulietta, em sonhos de uma noite de verão. Não, não tinha errado de Shakespeare: é que o vestido dos sonhos era, de fato, da coleção verão. Como o usaria naquele puta frio, ainda era um mistério, mas, enfim, milagres aconteciam e ela tinha fé em Nero e na qualidade do tecido da loja híbrida, meio Itália, meio China… A tal da Capuleto Dresses… A fare l’indiano, Pussy… Affari…

Chegou na porta da Capuleto Dresses, que ficava bem em fente ao balcão de Giulietta, abarrotado de gente! Casais e solteiros, desesperados, atropelando-se em busca do presente ideal; muitos, na certa, tentando aliviar a consciência por algum deslize récem-descoberto. Cadeado, pulseirinha, óculos, toalha de banho, até papel higiênico Romeu e Giulietta. Esse, com certeza, made in Italy; que italiano não se presta a qualquer papel. Pussy sabia: um rabo bem limpo é coisa de família.

E o Balcão também era dado às tendências de mercado: havia a linha Giulietta e Giulietta, Romeu e Romeu, Romeu-Giulietta-Julieta, Jubileu e Roleta…

“Cazzo hai fatto, Zefirelli?!” – Benjamin ficou incrédulo.

A genialidade às vezes é um veneno mortal! Shakesperae agora estava reduzido a indulgências de amantes capitalista decadentes. Ou de solteiros pessimistas invejosos miseráveis, como ela, que jamais teriam dinheiro suficiente para limpar a bunda alla Giulietta depois de comprarem o vestido Capuleto na loja sino-italiana logo ali. Já não bastara a miniatura indiana?

Cadeado e pulseirinha, quanta hipocrisia! Queria ver se Romeu e Giulietta tivessem continuado juntos… O balcão teria ido por água abaixo! Nenhum casal dura tanto assim! Só na ficção mesmo! Shakespeare é uma farsa, por isso vende tanto!

Ah, Pussy Jane, vai! Vai lá comprar seu vestido e não enche o saco! Deixa cada um cuidar do seu rabo com o papel que quiser.

Mas será que devia comprar mesmo? O vestido estava em promoção, ali, bem na vitrine, assinalado de sconto Capodanno! Não seria óbvio demais? Imaginou a cena do baile de máscaras: ela ia entrar sentindo-se estupenda e alguém com certeza ia apontar “Olha lá um Capuleto! Estava na promoção!! hahahahha”

Imagina, gastar os 100 euros que economizara dando voltas e voltas na Arena de sua mente incendiada por Nero, para depois ser taxada de turista; a brasileira que compra em promoção?? Que vergonha! Ah, se fosse comprar o vestido, melhor antes adquirir a carta higiênica Romeu e Giulietta, assim, caso a acusassem, bradaria, digna: “Esse vestido é mesmo um Capuleto chinês, e daí? Eu limpo o rabo com Zefirelli!”

E, de fato, ela era fã; assistira a tudo do Zeffirelli! Isso a redimiria de qualquer compra escusa, até mesmo da miniatura da Arena. E outra, a Europa também estava em crise. Shakespeare já havia aderido a Brexit… A vida real era bem essa: da economia na cova dos leões! Vai ver até o Zefirelli era chinês…

Peekareta do Partido Comunista

Entrou na loja, segura e decidida, encarando o vestido como quem enfrenta a maior fera de todas: o próprio bolso. Tinha que ser agora: ou comprava ou Benjamin e a Brexit apareceriam com um argumento mais convincente.

Buscou a primeira vendedora que viu na frente:

– Per piacere, vorrei provare quello vestito.

– Rosso o nero? – Nero? Nero, não. Nero já havia incendiado Roma, não seria boa influência para a clareza de seu julgamento acerca do caimento do vestido… Vai Pussy!! Escolhe! Pegar ou largar!

– Rosso!

E a lagarta transformou-se em borboleta! O vestido ficou perfeito… Ou talvez fosse ilusão de ótica, truque de espelhos: italiano é referência em questões de física… Vai saber?

Mas, se Da vinci não a estivesse enganando, e nem fosse influência da fotografia Zefirelli, o vestido era, sim, perfeito. Nem Shakespeare tentou dissuadí-la: o Capuleto era dela!

A vendedora trouxe-lhe a má notícia:

– É bellissimo e abbiamo anche un sconto, 150 euro per 130. Per fortuna Capodanno!

Fortuna? Fortuna era o vestido, isso sim! 150 por 130?!!! Como assim?

Olhou bem de perto a etiqueta…

A vendedora estava certa! Era a droga da miopia, não da Vinci, a confundir-lhe!

Pussy, para economizar tostões destinados à baguete de todo dia, acabou não comprando o par de lentes de contato novas de que precisava e estava assim, bem míope, tentando roubar tostões das etiquetas: 150 e não 130!! Enxergar em euro saía mesmo o olho do …130 euros?!!

Sobrariam só 20 para o ingresso da festa! A festa de fim de ano que aconteceria dali a poucas horas! Como conseguiria os trinta para completar os 50, necessários ao ingresso??

A loja estava pronta para fechar. Era pegar ou largar! Lagarta ou borboleta? Pão ou Circo? Nero ou Shakespeare? Otelo ou Russel Crowe?

Pussy havia ficado pelo menos 30 minutos no provador. Então, em um misto de vergonha por ter arruinado a paciência da vendedora às vesperas do ano novo, outro tanto pela vertigem por haver circundado por séculos a Arena, e outros tantos pelo efeito zero açúcar do café-água vagabundo do MacDonalds, somados ao desejo de comprar a cafeteria Bialetti versão 2020, respondeu sem pensar:

– Lo prendo! Subito!! – e fechou a compra como quem toma a decisão Capodanno da vida, esperando a morte, Giulietta Capuleto Dresses.

Saiu ao fechar de portas da loja sino-italiana, às badaladas do fim da tarde, calculando e valorando cada centavo de euro que, supostamente, para alegria de seu custo-benefício, poderia ter costurado-lhe o vestido: as mãos artesanais de um Shaolin, ou um Chalau, um mestre budista, um descendente de imperador, uma gueixa enfeitiçada… Precisava hipervalorizar cada centavo, caso contrário, jogaria-se do balcão dos Capuleto, logo ali, na Casa di Giulietta. E aquilo sim seria made in Italy: Divina Comédia!

Devia mesmo ter comprado o vestido?? O vestido mesmo devia ela ter comprado? Comprado devia ela ter vestido? Vestido comprado ela devia??…

Ah, se devia… como devia… O bolso, à essas alturas, já estava chorando…

Cacete!!! Será que não podia ter um segundo de paz e tranquilidade? Já não bastavam as horas e horas rodando em círculos na porra da Arena, que não era miniatura, jogada aos leões de sua própria consciência, tendo que aguentar Nero!!??

E será que devia ter escolhido o vestido preto ao invés do vermelho? Droga: agora não dava mais para trocar…

E esse não era o único problema: Como Pussy ia comprar o ingresso de 50 euros da festa Capodanno?? Pior que, na droga da festa, não ia comer porra nenhuma! Nesses lugares, até o radicchio e o finocchio, aos quais sempre recorria, eram banhados a olio extravirgine.

Melhor seria levar o biscoito de arroz no bolso ou no decote, porque ia passar fome… Puta que pariu! Agora que estava começando a ficar contente com o vestido!

Mas o vestido não era nada sem a festa! Tinha que conseguir, de qualquer maneira, os 30 euros que faltavam para o ingresso até 22:00!

To be continued…