” Um , dois , feijão com arroz . Três , quatro , feijão no prato . Cinco , seis … Um dois , feijão com arroz . Como era mesmo o cinco , seis da música de brincar ? Cinco , seis o quê ? ”

Canção de atormentar e causar insônia . Virava de um lado para outro , irrequieto, na cama dura de estrado . Colchão de ripas ; e os malditos números com feijão , atazanando-lhe a cabeça , já não bastassem os trinta graus do quarto .

Três dezenas de temperatura e , no mínimo , cem pessoas . Diabos como ele, mal feitos , mal acabados . Cem internos , sob pena qualquer . Nem mais lembrava qual era a sua , das tantas infrações cometidas . Até que era bom ter teto para se cobrir ; saía quando queria , voltava se desse vontade . Se arrumasse casa , nem que fosse barraco , só assim não retornaria . Ou se pegassem sua papelada e descobrissem que em breve não seria mais considerado de menor . Aí ia ser fogo ; tinha uns dois meses pra se arranjar , senão , rua . E na rua é bem fácil pegar cana dura ; perigando não sair nunca mais . Tinha colega seu que morreu no primeiro mês de cela . Troço que metia medo esse assunto de cadeia …

Feijão com arroz ; e a fome de matar . Foi o maldito prato do vigia , que vira pela manhã ; farto e fumegante , com pedaço de carne gorda debruçado em grãos ; ainda todo de farinha pelos cantos . Que imagem desgraçada ! Isso sim é que era crime , não a sua falta de estômago , ladra de carniça . Feijão no prato ; e nada fazia-o apagar o quadro da memória . Tripas e ripas , doloridas às faltas de almoço e pouco colchão .

Todos já dormiam ; algumas camas vazias . Moleques arriscando uma noite longe ; era difícil mesmo alguém da guarita notar .

” Sempre tem um esquema montado pra quem puder querer . Só prometer um cachimbo ou coisa e tal pro polícia , que ele dá corda , até onde não puder ser enforcado com ela . Sabem mais de bandidagem que a molecada . Aqui se aprende bem sobrevivência … Feijão , feijão … ”

Talvez pudesse tentar a guarita dos fundos . Muitas vezes havia fornecido para o tal José ; sabia que aquele não negava fumo ; e o menino só tratava com o que havia de melhor . Se conseguisse fugir pelos fundos , iria direto pro Anhangabaú , uns poucos quilômetros dali . Arrumaria refeição , mesmo fora do prato , mesmo sem toucinho , qualquer resto pra enganar as tripas . Depois que arranjasse o fumo , voltaria às ripas . Não mais que três horas de viagem . O prato de comida do vigia não o deixava em paz ; mancomunado com os números insolúveis de feijão e arroz .

” Cinco , seis , cinco , seis e que se dane . Volto de estômago , nem se for pra mastigar lixo ! “

Saiu cuidadoso, cautela para não acordar os outros internos . Poderiam chantagear , querer saber aonde ia , bisbilhotar seu prato de feijão . Desceu a escadaria escura . Fazia-se vista grossa na casa de meninos . Na guarita dos fundos , Zé do Cachimbo : a cara gorda de displicente bigode , uniforme amassado e olhos de más intenções . Abriu a portinhola de seu cubículo vigilante e quis saber onde ia o negrinho .

Negrinho . Quem o visse jamais estipularia-lhe a idade de dezessete . Mirrado , quase osso , pouco mais de um metro e meio ; sem cabelo , deixando exposta cicatriz de faca na nuca . Bênção de pai . Edson , o nome do moleque . Disse que ia atrás de pedra e podia dividir . Não mencionou a fome , o toucinho e a insônia das ripas ; capaz que o homem não o deixasse sair . Zé do Cachimbo entusiasmou ; afinal , sabia que Ed conseguia o que havia de melhor .

” Filho da puta de negrinho ! Deixa estar que um dia ainda descubro quem fornece e daí , acaba a mamata . Não sai daqui nem arregaçado … ” .

Abriu a porta da guarita , destapou o buraco do chão , empurrou o moleque pra baixo .

” Desce nêgo , vai pro inferno e volta colorido “.

O buraco cavado na guarita era passagem para o bueiro da rua ; os meninos saiam a umas quatro quadras dali , perto do viaduto . A única condição era voltar antes de amanhecer ; caso contrario , levava coça . Ed mesmo já experimentara duas , de cicatriz e meses de trabalho forçado . Aprendera as regras da casa e há muito as respeitava .

Quase uma da madrugada ; três horas para a trajetória , de estômago às pedras . Vale do Anhangabaú , onde tudo valia , dos corpos dispostos aos lixos de gente ; dos restos de corpos e lixos impostos . O moleque colhendo pedras no vale , floresta concreta . Chapeuzinho vermelho , saci-pererê.

Edson entrou no primeiro beco à esquerda da rua do prédio mais alto . Um , com luz piscando letras . Só conhecia a de seu nome ; o prédio de letra Edson . Dirigiu-se à pequena porta de madeira podre , com uma caveira estampada em vermelho . Três batidas rápidas . Feijão com arroz .

” Abre logo , Carcaça , que ainda quero enchê a barriga ” .

Engraçado que , durante o percurso , esquecera-se um tanto das gorduras perfumadas . De fato , se rolasse mais duas ou três vezes nas ripas doloridas, esqueceria-se do prato . Mas o moleque gostava das beiradas , gostava de quereres e satisfações. Sentia saudades de sua letra-nome no topo do prédio mais alto ; fingia até que era casa . Fingia que era rico , proprietário . O prédio mais alto do inferno .

Três batidas , mais frenéticas .

” Porra , Carcaça ; abre essa merda . Tem polícia na minha cola , se não leva a pedra logo , tomo na cabeça ” .

Nada de resposta . Carcaça era amigo de tempos , passaram juntos por várias instituições , umas três . Uma das surras de Ed foi por acobertar a fuga do amigo . Ainda livrou-o de vingança , cortando a garganta de Pomba , um outro traficante de pedra . Carcaça irmão grato ; sempre que Ed precisava de ajuda , sabia a quem recorrer . Vez ou outra , paravam pra sonhar com outras versões de suas histórias . Quem seriam , longe do inferno ; a quem pertenceriam . Talvez uma família e um cachorro . Carcaça queria um filho .

” Ed , vou bota teu nome no moleque, hein ? Tu vai ser tio brode . Tio do Edinho ” .

O negrinho ria-se da imagem hipotética de carregar filho do amigo no colo . No fundo , não acreditava em planos futuros ; não havia como . O futuro contado a grãos crus de arroz e feijão . Sonhos de fumaça e cachimbo . ” Abre , porra , Carcaça . Preciso de duas pedra e só . Tu sabe que tenho os trocado . Mano , abre aí .

” A luz acesa , escapando às frestas de porta carcomida ; iluminando beco escuro . Barulho de televisão a esmo . Vozes , não se sabia da tela , ou vitais. Ed começava a desconfiar dos próprios ouvidos . Quem sabe o entorpecimento de toucinho e farinha . Maldito prato esfomiado ! Discussão . ” Carcaça , é tu ? ” .

Estranho , o amigo morava sozinho ; um cubículo ; só espaço de televisão roubada mesmo . Só uma tela pra fazer seu mundo menos apertado .

” Carcaça , mano , responde ! ” .

Ed chutou a porta apodrecida . O amigo Carcaça no chão , espremido : uma bala no peito . Dois estranhos , de costas para a porta , revezando-se em opiniões quanto ao que fazer com as pedras de cachimbo .

” Carcaça , Carcaça !!? ”

Ed ajoelhou-se ante o buraco de bala , tentando ressuscitar esperanças . Seu desespero durou pouco ; interrompeu-o, lâmina afiada de faca de um dos homens assassinos . Estômago . Um , dois , feijão com arroz . Um , dois , fugiram às marcas de sangue, deixando carcaça e carcaça ; amigos , tios e esperanças , sonhos de prédio mais alto e E de Edson .

O negrinho , mesmo às dores e tripas , tentou alguns passos . Queria vingar Carcaça . Vingar carcaças , a sua e a do amigo . Correu o pouco suficiente para alcançar novamente a tampa do bueiro escancarada , como ela a havia deixado . Ninguém em redor . De fracas respirações e úlceras esfaqueadas, atirou-se no buraco . Uma ultima vista do prédio de letras Edson .

” Cinco , sei , chegou a vez . Sete , oito , o que vem depois ? ” .

Enterrou-se a bueiro e buraco de bala em peito irmão . Cerimônia ali mesmo , no inferno do Anhangabaú , às pedras e concretos , aos corpos e carcaças . Ed entre seus dois mundos , bloqueando passagem entre o inferno e o inferno .

Quase seis , sete , oito . Zé do Cachimbo cansara de esperar .

” O nego  vai aprende lição , ah se vai … Tampo aqui essa passagem da guarita e ele não volta . Daí sim vai saber o que é uma coça . Ainda endosso que o moleque vende pedra pros interno . Vai sangra que é pra não esquece Zé do Cachimbo “.

Quase seis da manhã , sete ou oito . Mutirão de limpeza no Vale do Anhangabaú . Logo mais , discurso do prefeito . Alguém fecha a tampa do bueiro para a montagem do palanque . Bueiro-túmulo . A  Edson sem sobrenome ; que descanse em paz…

Ilustração: Maria Lúcia Nardy