Noite de lua; a mais brilhante do ano, segundo página de jornal. Difícil reparar lua entre luzes-cidades infestando o céu. Mas, se deu no jornal, deve ter sido. No caminho para casa, ainda tentei, atrapalhada de universo circunscrito de automóvel, localizar o satélite. Não me lembro do brilho incomum. A lua era vulgar em meio às luzes de artifício. Temperatura agradável, quase maio, em pleno fevereiro de verão. Passava das nove e meia, um tempo para descanso, xícara de leite, conversas trocadas em fim de dia. Coisas do comum.
Estacionamos o carro; a família saíra para um passeio e, como de costumeiro, voltava aos seus deveres de lar. Dormentes sob o mesmo teto, levando o tempo para dar voltas de automóvel, gastando-o a tanque cheio, desentendidos da escassez. Dormiam sob o mesmo teto de aflições e tolas verdades, de perdas de algo e faltas de sorte. Insones, sob o mesmo teto. Às vezes causa tristeza a falta de vida. Falta cometida por aqueles que a possuem e a levam passear de rodas, paralítica, desgastada .
Fim de noite sob a mesma lua brilhante dos jornais. A mesma lua dos dias passados e vindouros. Será que apenas eu a confundia com luzes de postes elétricos e sinalizadores? Será que a confundia com pensamentos? Lua confusa, talvez amenos brilhante, em anos.
Estacionamos o carro. A mãe desceu para abrir o portão Fez cara interrogativa ao notar o cadeado aberto, preso à corrente. Tinha certeza de tê-lo trancado. Certeza absoluta. Creio que todos a desacreditaram, em seu signo ascendente dispersivo gêmeos aerius. Fingiu-se tanto de espanto; um ou dois segundos exclamativos; mas o cansaço e a frustração reinantes de fim de dia eram tamanhos, que o cadeado tornou-se mero detalhe. O que antes serviria de motivo a grandes discussões familiares sobre a desatenção da mulher, passou despercebido.
Entramos todos, rapidamente, cada qual a seus passos e vontades, maiores ou menores, deporta adentro. Dispostas bolsas, sacolas e pastas sobre o sofá de gente indisposta, contraditória. Pessoas que buscam felicidades e coisas a lembrar, gastando tempo em voltas paralíticas e desperdiçando mútuas companhias. Pessoas nós, de insatisfação, às voltas com dores de fabricação própria e feridas de Prometeu.
Promessas que se desejam, a pedidos clamorosos, sejam cumpridas. Resta-nos o céu, distante; um paraíso perdido, mítico e contraproducente, onde somos personagens ou lendas, mentira ou fantasia. Onde estamos, além de sob o mesmo teto? Onde nos fala harmonia e cumplicidade? Aonde escondemos os sonhos de compaixão e cores fraternas? A lua observava, menos brilhante confusa de tantas indagações.
A Lua enxergava através do teto. Decidi um copo de leite, mais que uma xícara para diluir gostos de nada. Via láctea e Lua, para adornar existências engasgadas. A cozinha ainda desarrumada, restos do almoço mal digerido. Engasgues pelos cantos e um cheiro de fritura reprimida; afinal, saíramos após almoço, trancafiando portas e janelas, peixes empanados e sais oleosos. Talvez o cheiro associativo, ou mesmo distração desinteressante, fez-me buscar o bicho de estimação (não muita) ,em seu aquário improvisado. Pirex de cozinha de uns trinta cm diâmetros e algumas pedras comemorativas em tons azuis. Algo que lhe propusesse uma identidade aquática, que não o classificasse adorno de cozinha bagunçada. O suposto viveiro fora colocado sobre o freezer desativado, elementos de desordem: o congelador-prateleira e o aquário solitário.
Ali do alto , uns dois metros do chão, o bichinho espionava nossas cabeças; ora imerso na água de torneira, distorcido de visões; ora erguendo-se em busca de cabeças menos densas. Nossos pensamentos deviam parecer assustadores vistos límpidos de água. Pobre lagosta.
Talvez o cheiro associativo de fritura de pescado, ou mesmo distração, fizera-me buscar olhos sobre o freezer desativado, a lagosta de estimação. L’augusto, seu nome, dado de improviso, tal fora sua recepção. Lagosta: presente inesperado de excentricidades de amigo em processo psiquiátrico.
Olhos sobre o freezer desativado e aquário vazio. Apenas pedras azuis adornando o recipiente solitário: a lagosta desaparecera. Vestígio algum, exceto um pouco de sua comida boiando, esquecida na água cloro-encanada . Complicou-me os pensamentos aquela ausência. Onde diabos se metera o bicho? Como teria pulado de quase dois metros de freezer? Algum animal intruso a teria devorado? Ninguém soube responder .
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Ilustração: Maria Lúcia Nardy Bellicieri
Estarrecidos, iniciamos a busca pelo fugitivo: mesas, cadeiras, sofás, televisores, geladeira. Sala e cozinha revirados. Nenhum sinal do crustáceo misterioso. Até o ânimo reaparecera; o objetivo comum e a procura faziam-nos cúmplices a mais, time a mais, algo de família, de união. Mas não houve resultado constatado. Sentiamo-nos perdedores; no entanto, compensados com alivio de sermos viventes do mesmo teto; comparsas. A falta da lagosta quase não fazia diferença.
Diálogo reestabelecido após dia de quietudes e discussões mentais, iniciaram-se conjecturas sobre o desaparecimento vermelho. Extremamente estranho o acontecido. Detetives, tentávamos explicações teóricas e cientificas, hipóteses , e até teletransporte. Nada que nos satisfizesse a curiosidade de não se poder saber ao certo. Desistimos.
À tona, então, em água de cativeiro de lagosta, surgiram sentimentos escusos em relação ao bicho. A primeira a se manifestar foi a avó. Sentira-se estranha desde a convivência comum com o lagostim. Algo de pernicioso… Confessou que tinha vontades de despejá-lo descarga abaixo, que duvidava das intenções gentis do doador de lagosta. Onde já se viu, presente desses? Coisa mórbida, coisa esquisita, parecia escorpião. Pedira a Nossa Senhora que, se houvesse energias negativas no lagostim, algo aconteceria. Muita coincidência, o sumiço inexplicável. Foram os santos e magia a darem cabo do bichano, na certa .
Logo, cada um contribuiu, à sua maneira, para a mistificação multi-patas. Sobrenatural aquele dia inconsciente, submerso em águas de lagosta. Restabelecera-se diálogo faltoso entre nós, viventes de mesmo teto. Interrogativos de causa comum. A mãe achou relação entre o cadeado escancarado e a fuga. Quem sabe, não tinha sido o bicho a retirar-se elegante, pela porta da frente? Duvidoso, mas possível, passível de suposição.
Magia negra, Lua e lagosta. Seria algum feitiço? Estilo lobisomem ou desse outros seres de dupla personalidade; como os sobreviventes de mesmo teto, observadores de mesma lua. Duais e conviventes. Quem sabe não tenha sido o bicho a retirar-se, monstruoso, pela porta da frente?
Desistimos de supor e de tentar encontrá-lo. Na verdade, não queríamos; exceto o pai, que se afeiçoara do pequeno, até lhe dava batatas e outros petiscos. Trocava-lhe sujeiras e águas paradas. O pai ficou cabisbaixo. Dona da lagosta, confesso que pendi mais à satisfação com o seu desaparecimento; afinal, se houvesse campos energéticos duvidosos, estariam direcionados a mim. Avó dava graças aos céus; fora sua fé a desmaterializar o mal curtido em água de torneira. Ao lixo com as pedras azuis!
Prontos a nos recolhermos, tal faziam lobisomens, lagostas humanóides e seres de dupla personalidade; pusemos fim à busca. Passamos, cada qual, a suas rotineiras tarefas fim de noite. Dirigi-me à cozinha para, então, voltar à vontade de copo de leite.
Distraída em pensamentos e vistas de carpete de sala, presenciei o inesperado. Indo, quase ao meu alcance, de passadelas apressadas, a tal lagosta desaparecida. L’augusto voltava a habitar-nos. Quase um desespero doentio em sua agilidade de pinças e patas. Bicho fora d’água. Será que presenciara a conversa e voltava por vingança? Ou apenas agarrava-se à ultima chance de volver ao seu aquário de cobertura de freezer? Quais seriam as intenções ?
Não tive tempo de conter o espanto e, de certa forma, a paradoxal alegria em ver ressuscitar uma vida que até segundos atrás pareceu-me esvaída. Gritei: ” Olha a lagosta ! “. Todos, cada qual a seu velocímetro, largaram afazeres e vieram certificar-se. Impressionante! O pai apressou-se para socorrê-la; providenciou novo pirex, mesmo sem pedras, e despejou-a com água corrente. A avó empalideceu a olhos vistos. Que diabos o bicho tentava? A mãe, apesar de tê-lo de más significações, riu-se da situação e patas de poeira do animal. Compartilhávamos o mesmo teto.
Voltou ao cativeiro e, de certa forma, o fizemos, encontrando nossa normalidade programada. Voltamos, todos, às condições de compartilhar silêncios sob forma de dor. Silêncios, tais esses, de animal calado, talvez não guardem significado triste, apenas o traço conformado da existência.
E era esse nosso ódio da lagosta: seu reflexo calado, em espaço circunscrito, espelhando-nos os semblantes emudecidos. Era esse nosso medo de lagosta: a tal da identificação. Era essa nossa vida de lagosta : fuga e cativeiro .