Às vésperas do fim do mundo

Tinha-me como companhia… Num dia comum, desse meio de semana, desses dias que se quer evitar viver. Sim, já quis evitar viver. Quem não?… Quem não desistiu-se a alma, num dia desses, de uma quarta, terça, sexta, milésima volta de ponteiro e solidão compartilhados. Quem não?

Foi difícil admitir, a mim mesma, uma positivista inata, dessas que nasce aos trancos e barrancos de frase feita e filosofia inerte, de papel. Que papel essa tal filosofia ao fim do mundo? Custou… Custou-me a lágrima mais doída que foi, aos poucos, rasgando-me a carne-sorriso, falsa, vendida, vencida, sempre compartilhada. Custou uma lágrima ácida, corrosiva, que embrulhou-me o estômago do diagnóstico mais seco e brutal que já havia merecido, num dia desses em que quis evitar viver: o fim do mundo e eu, enfim, estava em paz.

A cicatriz da lágrima corrosiva era testemunha: o fim do mundo e, eu, enfim, no mundo, um eu, enfim…

E a cada passo na rua deserta, um e outro corroídos como eu, talvez estupefatos em mesma constatação, mas usando máscaras.

E todos usamos… todos sempre usamos máscaras. Dessa vez… Só dessa vez, não quis; talvez por ser o fim do mundo…

E resolvi andar a alma nos olhos, encarar aquele dia que poderia ser um dia desses em que quis evitar de viver, mas não …

Não era: era um dia morto nunca tão vivo. Nunca tão chão e afirmativo da solidão que sempre trouxera ao peito.

Era o meu fim do mundo, aquele que tinha estado sempre presente, concretizado no silêncio das calçadas vazias, esgueirando-se em um e outro que, talvez como eu, tentava desvencilhar-se, em uma última chance,  das máscaras.

Um ou outro que, talvez como eu,  não tinha coragem de olhar nos olhos. Não nos meus… Ou seriam os meus olhos descobrindo-se de alma, que já não enxergavam mais nada ou outro, apenas os lugares, os mesmos, que percorrera anos e anos, agora, apesar de mortos, nunca tão vivos… Talvez fosse minha alma, envergonhada mas redescoberta, que não quisesse olhar os olhos outros, e descobri-los vazios. Talvez nesse meu dia de fim do mundo, esse fosse meu voto: compaixão.

E havia pássaros, pássaros que nunca ouvia, que se travestiam de buzinas e asfalto arrastado, nesses dias de evitar a vida. Aviltá-la… Não eram aviões: pássaros ressuscitados, que nem mais voavam, enterrados no concreto dos corredores vazios da cidade suja. Eram os pássaros ou a ausência das  multidões que eu ouvia? Era o que eu não via, ou era o peito enterrado de asfalto, vivo, sufocado? Ou eram os olhos que fugiam das outras almas que se queriam livres mas que sem máscaras já não podiam mais respirar?

Ouvi um peito e um suspiro. Era o fim do mundo e eu nunca existira tão franca por admitir-me tão fraca recontando, a cada passo, os dias de evitar a vida. Correndo o tempo que , de repente parou, para livrar-me deles.

E a vida que tinha a vida toda pra acontecer e era, aos poucos, apagada no olhar míope e embaçado daquela gente que usava máscaras. A vida, pronta pra existir sorrindo, rasgando cada lágrima os sorriso de vender almas de lama.

E eu só enxergava isso, agora, enquanto me despedia do passado andando passos largos não se sabia onde, em direção ao fim do mundo? Descompasso…

Ah, eu nunca havia sentido o cheiro das ausências. Era doce, eram tantas, eram tolas, todas, que não podiam mais compensar o tempo perdido, não às vésperas de, enfim, o mundo. Ou seria o fim? Ou era esse meu começo?

Despedi-me de mim, dos olhos turvos, que assentiram sem qualquer dó a lágrima ácida rasgar-me o riso prospectivo, sempre prospectivo. E eram os pássaros e uma música: era Imagine ou Imagini, era inglês ou italiano? Ou o canto dos pássaros é que era universal?

Por que só agora eu ouvia? Por que, só agora, a via? Por que só agora o caminho de concreto era nada mais que ilusão e o vôo do estômago não podia mais disfarçar a alma pálida, perdida? Por que só agora eu era carne e osso? Às vésperas do fim do mundo? Ou as vésperas do, “enfim, o mundo”?

Era Imagine “living life and peace”… Era Lennon, era “una canzone che se ne và”… Eram Beatles e Zucchero e uma playlist de alguém que eu quase nem conhecia: eu. Que eu quase nem existia, até que um dia… às vésperas do fim do mundo… Enfim, o mundo.

“Una luce fa luce laggiù, vedi?”

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