Letra à bala

Perguntaram ao escritor, inventor de frases, o que lhe surtia idéias. Como as sortia, caixa-surpresa, versando sobre o que não se viu, ouviu dizer ou nem mesmo se tentou em entendimentos? De que alquimia, colocar nomes-letras em matéria inexistente?

O homem, de sua pena-compaixão, disse nada: convidando quem o questionava a buscar a própria resposta, baixou novamente a cabeça, rasa, lisa, em branco, à altura do papel. Debruçou-se de todo peso: corpo, espírito inventivo, experiência e ignorância. Desdobrou-se experimento, à mão armada do instrumento preferido de lutar seus poucos conheceres: a caneta que o recriava criativo, inspiração-respiração.

O homem de cavocar letras pôs-se a desenrolar, enovelando-se na trama de palavras que formava tecido, pele organismo, em tinta sangue-suor que lhe escorria a vida, hemorrágica, escolhendo-lhe em vidas avalanches de rodas fortuitas, movidas à intensidade de serem em série e muitas: todas as funções que uma única alma pudesse atender.

Uma única alma socorria-se de todas, existentes ou inventadas, resistentes  e passivas, coloridas, doloridas, vincos, rasgos e rusgas, nas letras do escritor que confeccionava página em pele.

Debruçado em seu tempo-víscera, que era todo o vigor de que dispunha, o homem colecionava presságios, sinas, crenças, estigmas e desígnios, sendo-se demais nos demais, a despeito de um “a seu respeito”, em respeito ao peito múltiplo dos tambores-título e rodapés. Ciranda: nada o detinha. Compaixões, entreatos e retrato dos redores; menos criador que espelho da criação, devolvia ao mundo, uso-fruto, fruto do que imaginava ter-lhe retirado.

Não seria assentir mediocridades responder ao curioso como concatenavam-lhe as tantas linhas entrelinhas? Que olhasse próprias órbitas e visse flores a vales em ossos; respirasse de oxigênio a toxicidades, regurgitasse em tons entãos, salivas cítricos e adocicados, o amargo de ser-se de outros. O curioso que desse ao trabalho de respirar menos enterrado repórter personagem, e rendesse ao irremediável que a função desvelar o mundo sugeria: paixão por compaixão.

Por que o fulano não se sentava na cadeira do escritor, experimentando como seria-se de outro traseiro?

O escritor levantou-se do papel em que se debruçara, deixando o assento estofado que ocupava-lhe o costume, oferecido ao indagador. Entregou-lhe o papel, recém-escrito à trama-letra, à pele e tinta, frescas. O perguntador sentou-se, acanhado, em lugar escritor, indeciso sobre ser ou não ser de outra vida, tanto mais aquela que abarcava pena de tantas: a sina de um inventor de vidas. O rapaz inseguro pôs-se a ler as idéias, vestidas tinta fresca, tomando cuidado para não borrá-las de má interpretação. Leu o que foi descrito acima, até aqui, mantando-se à distância reticente desses três pontos infinais…

Então, entendeu do que era feito imaginar diversos. Tomou-se da caneta do escritor, repousada sobre a mesa, em seu papel de ser, e sempre ser, o que a mão inventiva lhe somatizasse, e tornou-se um vivo-tinta, letra pelando a pele, fluindo um sangue de verter-se de suas próprias impressões: diversos em versos. Debruçou-se, talvez primeira vez, despindo-se do personagem imposto favorito, retendo-se a ater-se ao que levava um homem a querer-se muitos. Escreveu, letras em escândalo, revirando-lhe os escombros de mero observador, concluindo o papel que lhe era oferecido pelo escritor.

“Compaixão é o termo que leva a termo vontade da alma, criadora e espelho do mundo que a contém, incontida. Com paixão, vivem as letras de sermos todos e um”.

E finalizou, sem mais abraçar-se em necessidades de resposta explicativa. O curioso descobrira-se, em rascunho de caneta delatora, num sussurro “escritor para leitor”, um ser de sempre ser, mais de outros que da curiosidade que o continha, retido, refém de si mesmo.

Então, ao exato som do ponto final curioso, o escritor, mirando-lhe a alma no fundo-olho espelho, puxou gatilho, assinando-o assassinado, escorrendo tinta-trama-letra misturada à própria pele. Jamais permitiria passivamente que lhe revelassem o segredo compassivo, demitindo-lhe do protagonista imposto preferido.

E escorrendo a própria historia como fosse outra, imaginou, letra à bala, algum novo curioso que lhe reescreveria:

“Esse talvez tenha sido o mais genial final do escritor: o ponto final morrer-lhe, à mira de outro ponto de vista…”

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