A criança segura um sonho.
De olhos fixos, abertos de gulodice; intensos de sabor.
Um sonho em mãos inocentes.
Segura tesouro.
Teve receio da primeira mordida, absorto na beleza quente do doce.
E se interferisse no desenho perfeito de massa e açúcar? Talvez o sonho não parecesse tão belo dentado.
Mas, enfim, sonhos são assim, precisam ser provados.
Talvez o aroma e as expectativas superassem-no em sabor. Quem saberia?
E ele ali, a alguns centímetros da constatação.
Caberia no estômago?
Do tamanho de duas mãos.
A mãe dizia que bastava fechar uma delas para se saber o tamanho do coração.
Então seu sonho media dois corações!
Pulsantes às vontades e alegrias do menino.
A mãe ocupa-se de pães. O sonho do menino não estava previsto.
Mas fora sua insistência e a expressão de contentamento, antecipando satisfação esfomeada, que fizeram com que a mãe comprasse a sobremesa.
Mães não são dadas a sonho de padaria.
Nunca se sabe se frescos ou amanhecidos.
Mas ela teve que admitir: aquele estava realmente convidativo.
Recém frito, de creme displicente às beiradas, pintado de açúcar.
Até engoliu seco.
Mas então, o que pensariam dela?
Uma mulher da sua idade, lambuzando-se de sonho?
Pareceu-lhe ridícula a idéia. Bobagem de garoto. Um sonho para o filho e olhe lá…
Até desviou olhares a cobiça do brinquedo açucarado.
Mães não vivem de sonho.
Que nunca viessem a saber daquele seu deslize, mesmo que fosse só pensamento.
Um sonho para o menino, e olhe lá…
A criança salivava esperanças de açúcar, e sóis amarelados de creme.
Satisfaziam, as farturas de recheio, incontidas de papel de pão.
Papel de pão não protege sonho; é comum,
acostumado à mediocridade pouco salgada das fornadas de fazer iguais.
Papel de pão não é papel de sonho. Distintos, inconfundíveis.
Pão de miolo mole, oco. Miolo de pão é previsível.
Recheio de sonho é colorido, inventado, criativo.
Sonhos não servem ao paladar comum.
Sonhos servem às bocas famintas, não triviais, espetacularmente originais.
Bocas aventureiras.
Mas as pressas de mãe, enormes, puxam o menino pelo braço.
Derrubam o sonho récem-descoberto, no concreto da calçada suja.
Entre sonho e concretude, apenas o papel de pão:
conter, inutilmente, derrame de recheio e esperanças.
Mediocridade faz trabalho semelhante.
Sonhos caídos não renascem…
Talvez pães não derramem recheio no concreto. Sonhos são mais frágeis…
A mãe sentiu alívio por não ver a criança deliciar-se de creme amarelo.
Um tanto de desdém, vingado com a morte prematura daquele sonho.
Continuou apressada. Uma olhadela rápida para o creme escorrido no chão.
Quis guardar a lembrança de sonhos assim, transfigurados de concreto sujo, consolados de papel de pão;
Sim, aqueles mesmos insípidos pães de sacola, a quem os sonhos julgavam-se tão superiores…
A criança parecia não ter entendido ainda o acontecimento, extasiada de expectativas e açúcares cantantes.
O sonho assassinado não condizia, em absoluto, com o que há pouco carregava nas mãos.
O que, há pouco, media dois corações: o seu e o seu.
Que papel de mãe não consola;
tal papel de pão,
apenas testemunha desapontamento e derrame de sonhos.