Ao meio dia

Meio-dia e não quis enxergar.

Protegeu-se de lentes baratas, que ao longe, até passariam por marca de grife, dessas de vender conceito e modus vivendi.

Sol sobre as cabeças, e quis tolerar-lhe a presença.

Exceto pelas sombras espalhadas, multiplicando multidões e a temperatura febril; o ânimo da rua era impassível. Inverno ou verão, as expressões, percursos e princípios era sempre os mesmos. Nenhuma alegria sobressalente pelas roupas mais libertas; nenhum pedinte em menor auto-flagelo; nenhuma aflição poupada. Tudo mais claro e contrastante à luz radiante do meio-dia.

Será que era aquela a intenção do Sol? Sadismo? Melhor mesmo proteger-se dos raios UVB, ultraviolentos. Iluminar o escurecido é quase crime. Sol condenado…

Talvez a cidade não quisesse mostrar-se assim tão nua. Total invasão de privacidade!

A cidade combinava com noturno , quando se podia atentar mais aos faróis, aos luminosos, aos medos de assalto e afins. A cidade estaria protegida de julgamentos; e os mais lúcidos, seguros de não serem acometidos por consciências contundentes.

O meio-dia era sacana, com seus meios-termos e permissividades de convivência surreal: em uma mesma calçada, flores e pestes. Não, não ratos; homens rastejantes.

Se meios-dias prestassem, não admitiriam tal convivência.

Então os óculos escuros, os mesmos de Raul, tinham outro significado: eram mais que proteção; substituíam lágrimas.

O nó na garganta crescendo de amídalas. A porra dos óculos estavam sendo menos eficientes do que esperava. Ar restrito, de poluentes e alvéolos semi-produtivos.

Ao meio-dia, tudo a meio-termo; nem corpo capaz de ser involuntário. Cada célula deveria ser vigiada; caso contrário, a meia-vida seria instituída.

Não queria mais viver ao meio-dia, o meio-termo da meia-vida, a meia-foda das lentes cinqüenta por cento funcionais. Ultraviolentas… Talvez as lentes compartilhassem da tramoia luminosa de fazer saltar verdades permissivas de flores e pestes. Viventes de mesma calçada.

Nó garganta. Tinha a impressão de que seria necessário bisturi. Impressão de que seria necessário arrancá-la.

E foi uma gota, evaporada assim que lhe tocou os cabelos ardidos; que nem chegou a  refrescar pensamentos. Uma ponta indolor de um úmido interrogativo. Aonde, afinal, haveria espaço sobrevivente fluido, no desenho da cidade? E a gota parecia pura; ao menos o tocara como bênção. Uma gota incidindo pensamentos.

Olhou para cima, esquecendo-se do meio-dia a pino. Encarou lentes ultraviolentas, a intensidade certeira dos meios-termos de Sol; as verdades parciais da luz, admitindo convivência compartilhada, entre seivas e cinzas.

Foi espantoso; esperava visões de fim, punição de cegueira absoluta. Esqueceu-se de que talvez sóis fossem imprevisíveis, apesar de esconderem-se em repetitivos crepúsculos e entardeceres. Sóis jamais projetam as mesmas sombras.

E Sóis não antevêem cenários não iluminados. Aquele meio-dia chorava, gelo seco cutucando idéias sob lentes.

Lágrima sobressalente. Talvez não tivesse sido proposital expor, ao meio-dia, felicidades forjadas daquela gente, cinquenta por cento oxigênio, cinquenta por cento fuligem. Apenas um terço de alvéolos.

Um Sol decepcionado, quase eclipse voluntário. Um luto e única gota gélida escolhendo, ao acaso, o observador que tentava poupar-se das visões meio-flores, meio-pestes.

Um Sol envergonhado, desculpando-se por dar a luz às aberrações desvendadas às doze horas. Meio percurso.

Todos aqueles urbanos na mira de um Sol desolado; guiados às cegas e lentes violentas, por uma estrela desorientada. Afinal, fora em parte responsável pela denúncia dos meios-termos da justiça humana. Afinal, fora frustrada a tentativa de colorir o caos. Uma pena… O Sol não esperava falhar.

Pingou única gota; e se chovesse em milhões, seria indiferente. E se chovessem milhões, ainda assim se cumpriria  a miséria . Inverno ou verão traziam os mesmos passos, percursos e expressões.

Por isso o Sol poupou-se: uma única gota. Escondeu-se entre nuvens e qualquer outro pretexto. Apagou-se, empalidecendo em alguns tons a paisagem.

Ninguém notou, exceto o observador escolhido, escorrido pela gota herdeira.

O homem iluminou-se; entendeu, agradecido, as mazelas de luzir. Sentiu-se até aliviado; afinal, seu problema único eram os olhos mais hábeis. Qualquer cegueira inventada, ou mesmo pálpebras, funcionariam. Já o Sol, pobre Sol… e sua culpa de fazer gelar. A. Sina: expor, indefinidamente, flores e pestes, equivalentes, sobre o mesmo concreto.

O texto é parte do livro Crônicas da Cidade Crônica e da performance teatral “A via: Passageiros

A cidade é crônica.

Em seus dejetos, defeitos, detritos, destratos.

“Crônicas da Cidade Crônica” é um projeto pessoal que envolve literatura e expressão como antídoto às mazelas humanas da  cidade. Uma forma de digerir o real para não ser consumido pelas suas fantasias de grotescos.

Escrevo -me em crônicas, crônica, doente de lucidez e insanidade.

Crônica, escrevo crônicas.

Crônica, que não tenho e nem quero ter cura,

Crônicas que não tratam de um ponto de vista ou partida, um ponto final ou interrogação.

Crônicas que se  inserem em um conjunto de outras tantas, nascidas sangue frio e navalha afiada à língua e letra; e um tanto de remorso por enxergar o que não se devia, ou não se queria: o humano posto nu em suas fragilidades e escudos intransponíveis.

Essa dor crônica é comum, comunitária, minha-sua-nossa, de todos, e por isso intransferível.

Intransponível, de semente enterrada viva:

A dor-crônica da cidade.

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