Unidunitê

Ouvi a música que tocava cores na minha infância e falava em notas aquarelas. Os quadros de uma inocência que não uso mais nas parede: desmoronados.

A música era uma nova versão, uma releitura dos antigos sonhos, em outras vozes; que as crianças cantoras da minha canção, a original, cresceram. Adultizaram-se, adulteraram-se. Talvez nem lembrem mais das palavras que ensinavam, ainda que sob o mandato de contrato assinado de alguma gravadora. Talvez, já daqueles dias, exercessem as leis do trabalho forçado; talvez já fossem adultos, e o que lhes valia era poupança e cachê, e quase nada a aquarela. Mesmo assim, duvido não terem emocionado-se desse ou aquele significado de cantar cores. Duvido… Afinal, eram os porta-vozes de tantas e tantas crianças. Unidunitê: e todas as vozes de mãos dadas, correndo cantos, esconde-esconde, jogos de bola. Todos somos crianças.

E a música regravação, nova coreografia e rostos meninos desconhecidos… a música despertou-me um nó de garganta. A mesma garganta que, antes livre, soltava versos de salamê-mingue, expressões inventadas e gritos de alerta.

“Alerta!”. E lá vinha outra brincadeira de manipular o tempo veloz; distraí-lo enquanto aproveitava-se dias meninos. Juro: pensava que jamais passariam.

E aquele quadro que até outra hora ocupava a parede do quarto? O quadro da menina-bailarina, feito de mesma aquarela da canção e de pedaço de madeira improvisada… Aquele quadro, aonde foi parar? Até difícil imaginar-me as mãos, essas mesmas de enfiar em bolsos… essas mãos, artistas criaram o quadro bailarina. Parece impossível que mãos de agora guardar em bolso, grudadas a notas de comprar quaisquer, essas mãos já pintaram-dançaram pés-bailarina.

Ah, as notas de hoje comprar quaisquer… A bem lembrar, também passei uma infância de notas, amarrada aos boletins: uma ré, em chamada oral. Contraventora. Talvez seja essa a função das matérias, curriculares, de calendário escolar. Educar um eu contraventor. A infância vendida às notas: uma figura de linguagem qualquer que justifique o duplo sentido da frase, quando adulta. Quando essa frase crescer, terá o mesmo valor : a idade adulta vendida às notas .

Mas que palavra substitui infância quando crescida? Idade adulta mesmo? Ou adulterada ou o quê? Que ainda tenho as mãos grudadas a notas de comprar quaisquer… o que seja. O que são o quês, afinal ? Notas de comprar o quês? Só sei de notas que são todas falsas e não confio em valor que trago no bolso. Aliás, que valores trago no bolso? Esqueci ou os perdi no caminho? Esqueci até as mãos pintoras, essas tinha posto de lado, do lado oposto da minha criança bailarina. Onde mesmo foi parar aquele quadro? Só sei de notas, porque confio ouvidos a do, ré, mi; à canção de infância unidunitê. Só sei de notas, que notei, bem lá aqui dentro, um desenho aprisionado do sorriso de um antes. Só sei de notas, que o sorriso era meu e estava amordaçado no nó da garganta.

Quando da regravação da minha canção infância, quando do triste notar as mãos de bolso, quando das cores aquarelas raptadas, quando do unidunitê sorrateiro assaltando-me passados… Enfim, quando do meu dia de criança surpreendendo-me presente, percebi que o tempo transcorrera percurso implacável. Percebi que jogos e bolas e petecas e ritmos contagiantes tinham aberto-me passagem para outro mundo. Tal conto de ninar, prometendo escolhas próprias, destinos a seguir, falando final, feliz ou não. Falando apenas de finais, sem mérito condecorativo. Percebi que de todas as brincadeiras que gostava, nenhuma restou: nem corda, elástico, barbante ou polichinelo. Passe de mágica: e quadrados enumerados amarelinha, no chão, tinham virado simplesmente estúpida poluição visual e tinta velha. Nem vontades de um pé só causavam mais .

Céus e infernos rabiscados não faziam sentido; já não se vivia a certeza da oposição, a vida adulterada era de meio termo, metade boa, metade má. Convivência de paradoxos sob uma espécie de resignação que crianças de aquarela, aquelas que pintam pés de bailarina, não têm.

Não havia heróis que não forjados a marketing sintético; não havia heróis que não direcionados a inocências infantis que tudo crêem. Pré fabricados. Vivo desse mundo em que não há como não notar que se cativam infâncias a troco de nota. Pena ter perdido a ingenuidade, e triste fazer parte do time inimigo: adultos de sufocar.

Hoje sou eu a julgar de notas, classificar inteligências infantis, a desacreditar de sonhos meus próprios filhos. Eu, a preencher chamada oral como que alistamento militar. Eu ,a ensinar a amarrar os nós de garganta.

E um “sem querer” unidunitê, também, é claro, proposto a marketing de gravadora, premeditado… Unidunitê de faturar notas… Um “sem querer” unidunitê, a quatro vozes meninas, presenteando-me, amargo, meu dia de criança.

Senti-me estúpida: claro que haviam regravado a canção para comover os então pais, e fazê-los cantar catárticos unidunitês e infâncias esquecidas. Claro que a regravação era estratificada para ataque ao mercado alvo. Mas e os tais produtores, os tais gerentes, diretores, arranjadores e toda a corja… não tinham sido crianças ? Como podiam brincar assim com a memória do tempo veloz; que até ontem prendia parede, meu quarto bailarina? “Não era justo! Estavam roubando! Vou chamar a minha mãe”…

Ouvir aquela música era trazer espectros de mim mesma, figuras encantadas, recortadas da infância perdida. Talvez fossem esses os duendes que tanto tentei encontrar: projeções dos instantes pequeninos, caricaturas do passado colorido. Unidunitê era chorar os grãos de feijão percorridos todo esse caminho de olhar para trás, e vê-los perder-se, sem volta, do ponto inicial.

Unidunitê era saber que contos de fada nunca mentiram, exceto quando designavam final feliz: nas entrelinhas existe sempre o perverso, céus e infernos na mesma amarelinha quadriculada. E se pisa de um pé só, metafórico, ensaiando-se as faltas de chão do futuro, em que frutos sofrem de veneno, e são os ratos que montam carruagens… Dorme-se cem anos e quando se acorda… A corda e o nó na garganta. Unidunitê e já se ouvem outras vozes.

E não há mais quadro bailarina na parede, e outras crianças roubam-me brinquedos e gritam-me de mãe, e sou eu a ganhar notas julgando-as em notas, em suas frágeis inteligências infantis e erros de português…

Não, contos de fada jamais mentiram: convivem, bem e mal de mesma balança, sustentados pelo tempo veloz, que nem cantoria, nem bambolê, nem pega-pega conseguem ludibriar. Não se esconde-esconde. Unidunitê… e hoje sou eu o vilão da história. Adulto.

Ouvir a música foi saber-me tão distante de tudo o que me cabia. Foi lembrar-me papéis de carta que sonhava um dia escrever, um a cada amigo, com poema e perfume. Papéis de carta que primeiro viraram desinteresse, depois, infantilidade, depois lixo; carregando sementes de amizades e palavras de querer bem. Bem-me-quer, o nome do álbum de figurinhas, de colecionar e grudar em todo canto, até parede; a mesma de criatividades de quadro dançador. E até mal-me-quer não era desgosto algum; só mais um passatempo de despetalar flores. Só mais tarde entendi a dor das rosas mortas; só mais tarde mal-me- quer ficou triste de dizer. E havia ainda a outra coleção de figurinha: Amar é…, e reticências de completar com significados, sempre as reticências de um quase Amar é… eterno.

Ah, os desenhos de coloridos suaves, de tardes de correria de pátio e trocar papéis. Papéis de carta ou personagens de brincadeira, que toda criança quer ser tudo, de bruxa má à fada madrinha; que toda criança quer ter tudo, de um amar é eterno a toda coleção de bem viveres. Olhava desenhos e coloridos suaves de gibi, figurinha ou papel de carta, e fazia parte daquilo. Escolhera de voz própria ser criança e o era, em toda plenitude. Nada que não fosse vontade pertencia aos olhos ou ocupava pensamentos. Unidunitê era a própria vida que, hoje, falada em outras vozes, de novas crianças, pegou-me desprevenida. Acho que não sei mais pega-pega. Acho que nem corro, é só o tempo. Quanto tempo, mesmo, sem o quadro na parede?

Unidunitê: a vontade de cantar de própria voz, soltar as próprias tranças, morder a maçã envenenada e sonhar príncipe encantado. Se tivesse ousado antes, escolheria o papel de bailarina e “dançaria a vida em quatro cantos do mundo”. Era como respondia às indagações adultas, cheias de incredulidade à pergunta do estúpido habitual: “O que vai ser quando crescer ?”. Se tivesse ousado antes, jamais me perderia do meu quadro bailarino; usaria asas, as mãos de bolso. Unidunitê: sonho encantado, onde está você?

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