Queria fossem brinquedos, essas peças que articulo, desengonçado, com as mãos. Queria que me inspirassem alguma, formato racional; o melhor encaixe, eureka ou esses tipos de insight. Queria fossem de desenho animado, bons humores e coloridos infantis, esses personagens que me cercam.
Não seria mais fácil, existir infantil? Plenas possibilidades e de tudo solução. Por que a tal criança não me visita e traz os dons de recomeço ? Por que não monta-me o quebra-cabeça? Que os miolos já doem, batendo-se uns em outros, tal carrinho de parque diversão. Miolos tumultuam, tumultuam e, depois de certo tempo cronometrado, desligam; deixando-se por fazer. Fazendo restar a sensação de que nada concluíram .
Carrinho bate-bate causava sentimento assim: depois que paravam deixavam gosto de querer mais. Só que em caso de miolos, não é a prazer que me refiro; o que miolos deixam por fazer é tarefa-obrigação. Quando desligam desativam qualquer idéia solução que me venha em socorro à vida adulta desgostosa.
Miolos acabam atrapalhando. Ligá-los novamente não é vontade própria ou entusiasmo, tal criança em carrinho bate-bate. Acioná-los é orgânico, é de infelizmente. Se ao menos funcionassem… Mas só fazem ansiedades. Debatem-se em pensamentos contrários; exaurem forças e puf! Paf! Desligam. Essa a rotina: não surge bom efeito algum .
Bem -feito, bem-feito! Zomba-me a criança. Aquela minha, que se daria tão bem articulando as peças que carrego, desajeitado, nas mãos; ou ainda, rindo-se dos personagens caricatos que me cercam. Aquela criança adoraria pintá-los palhaços, colocá-los em boca falatriz cheia de formigas vermelhas; ou quem sabe, apagá-los de vez. Ou mesmo, a criança ainda sendo boa, apagar-lhes só os defeitos.
Não, não creio… Talvez a criança quisesse carregar-lhes defeitos ainda mais evidentes: um nariz desproporcional ao mais intrometido; uma orelha abano ao curioso; língua rendida, pesando toneladas de arrastar no chão, ao fulano maledicente. A criança brincaria-lhes em todo possível.
Bem -feito é o que me diz, quando enxerga-me tão despreparado para lidar com elementos; nem a própria cabeça, no bate-bate dos miolos, seguro direito. Um “Bem-feito!” maiúsculo atira-me alvo fácil, a criança, e seu dardo certeiro de acumular pontos vitoriosos. Bem-feito! Atiçando-me ânimos raivosos, quase fazendo-me pai autoritário, em ímpetos de dar-lhe uma surra. Criança mais malcriada! Vem acusar-me incompetente; assim, escancaradamente. Assim, irresponsável, rindo-se de mim, correndo pega-pegas , equilibrando bambolês , patinando rodas . Ai, se a pego de jeito …
Mas a peste foge-me: pega-pega, pega-esconde, pic-pic… Diacho de criança! E remeda-me, imita-me o jeito desengonçado, adulto, de lidar com redores, com peças desencaixes e personagens intragáveis. Ri-se deles e de mim, corre-esconde. Diacho de criança, se a pego… Mas por mais que persiga, escapa-me das mãos. Bem-feito é o que me dizem, criança e miolos desgovernados. Bem-feito a esse meu mundo descontente e avesso. Bem-feito por não ter confiado aos dons de infância a toda vida; não apenas a de primeiros passos, mas a toda, toda vida. Bem-feito , bem-feito …
Que horas seriam? Já era tarde demais? Já era de carruagens virarem abóboras e pessoas encrudescerem definitivamente? Já era fim de conto de fada e caso de perder os pés, nem mais os sapatos? Já era tarde-tarde; tanto que o único meio era desistir dos passos?
Foi então que a encontrei, escondida atrás de mim, bem próxima, bem à espreita; sorrindo-me sarcasmos, sorrindo-me só larguras… A criança escondia-se, desenscondendo, esperando que eu a encontrasse simplesmente olhando para trás e reconhecendo-a, ainda e em tempo, todo tempo, minha criança. Não tive como apanhá-la na surra prometida. Dei-lhe o presente, o meu presente; e também o futuro que ela tanto queria.
Coloquei em suas mãos as peças em desencaixe, os personagens que me aterrorizavam, os miolos entontecidos. Sorriu-me agradecida e um abraço.
E seguiu, andando-me por aí, em toda sua maestria manipuladora de bonecos, soluções, caminhos e inventividades. Seguiu-me… acho que tomando-me o lugar do adulto em desuso, sempre desgastado. Criança-me sorria novas fronteiras. Bem-feito… O mais bem-feito que podia ter realizado: dar em mãos crianças o presente de guiar-me os passos adiante .