Sobre a historia das ostras

Estive pensando sobre a história das ostras, escusas, escondidas; rumo a um mesmo final.

Não há ostras falantes, mímicas, vivas de pernas ou outras possibilidades; foram feitas para profundos, densidade, escuridão.

Não há ostras que se queiram livres do legado, que se queiram outro destino. Não há, exceto em desenho humano animado, em contos imaginários.

Não há, em histórias de ostras, rebeldia; porque inexistem finais felizes, e inexistem infelizes, também.

Não há ostras querendo-se outras , porque tudo o que se sabe e sempre se ouviu dizer, foram fundos de mar, densidades e profundos .

Encaixe perfeito, a solidão, à vida de ostra; sem que se faça sentimento pejorativo, sem que se façam tristes os dias a cumprir.

Ostras não conhecem solidão e não se concedem, o prazer ou delito, de quererem-se algo diverso.

Ostras são; e não há bons ou maus presságios quanto a isso.

Se lhes houvesse o cérebro perturbador, talvez fosse insuportável condescender com fundos de mar. Talvez fosse pena, talvez se tornassem vítimas da injustiça natural; ou pensassem-se descartadas, desimportantes, de pouco interesse e nenhuma valia. Feitas sob impulso e erro; nascidas para morrerem “esconderijas”, submersas, quase invisíveis.

Se ostras fossem de mentes humanas … E talvez até sejam. Quem pode afirmar contrário? Se mentes são ostras, sementes de solidão; então por que não se pode operar o inverso? Por que ostras não podem ser  mentes?

Mas há ostras outras, , umas poucas… vezes, raras. Há ostras que, mesmo sem mente, mesmo sem pensar, sentem solidão. Ostras maculadas, que um dia entristeceram doloridas, que o corpo não foi mais o mesmo. Incomuns às demais, violaram as tais ostras; o sexo prematuro desperto a pauladas. Invadidas, permissivamente, sob olhos da injustiça natural, que tudo e nada pode.

Marcaram-se de medo e fragilidade, e jamais puderam voltar a ser como as outras. Jamais puderam voltar a desentender-se de solidão, de culpas, desculpas e outras dores. Jamais puderam voltar a apenas ser: haviam sido maculadas,  a concha aberta, escancarada, sem vontade ou permissão. Engoliram a semente amarga a traição. Mesmo sem mente humana, o que lhes valesse qualquer pensar, prever, racionalizar, sofreram de perda.  Molestadas…

E o ruim que tinha sido, permaneceu; como se ostras tivessem memória. A semente desgrudou-se de bom crescimento e tudo o que sempre houve foi cultivo maligno.

Ninguém sabe; nenhuma outra ostra de vida comum. Ninguém adivinha. E as ostras especiais, essas violadas, capaz jamais se abram. Jamais se deixem expor em ferida. Uma fenda que que não cicatriza, também não dói mais a carne; mas dormente, cintila um outro tipo de sulco, um outro tipo de assassínio: a esperança desfeita.

Permanecem ostras, caladas, conforme lhes cabe. Cansadas do sexo perdido, que lhes podia ter sido dado presente. Cansadas de revivê-lo doente, na ferida de permanência indeterminada, poupada-enterrada pela concha. O sexo esfaqueado, que lhes poderia ter sido dado em função comum  de nascer tantas outras ostras semelhantes, de mesmo destino de fundo de mar; sem que houvesse nisso, qualquer triste ou insatisfeito. O sexo adeus, que lhes poderia ter sido poupado; que lhes poderia ter poupado da dor tamanha da diferença.

As ostras molestadas sentem, e não sentem-se iguais às outras. As ostras molestadas e seu todo ostracismo moléstia.

Mas um dia, enfim, escolhem-nas, as ostras da diferença; sob os mesmos olhos permissivos da injustiça natural. Escolhem-nas assim, a dedo, ao acaso semente; que talvez tarde, porém não falcatrua a lei da compensação.

E talvez tarde o tempo exato para que a concha seja aberta. O tempo, em espanto, as presenteia: as ostras de moléstia cospem pérolas; as mais belas e enormes pérolas de que se tem conta. O tempo exato, a demora do acaso  para que a ferida cicatrize jóia, riqueza, e todo o diferencial.

As ostras molestadas são, sim, diferentes: especiais. Que guardaram para si o medo, sem culpar as outras, sem desdenhar-lhes a liberdade de nada sentir, sem tentar praguejar-lhes a mesma dor que sentiram. Especiais.

E puderam comprovar, lançadas à confiança tempo, que não há olhos de injustiça natural, mas mãos de justiça, natural e irrevogável.

As ostras molestadas fazem nascer pérolas, em um sexo muito, muito mais operante do que jamais se pôde imaginar.

Estive pensando sobre a história das ostras e, talvez , todo sofrimento seja são. Talvez nenhum seja sofrimento; se, ao menos, se desvinculasse a mente humana de seu falso papel protetor de inventar vítimas, calcular danos e inibir percursos.

Talvez nem haja dores, mas cicatrizes especiais, que, se bem trabalhadas fortalecem, quase que em um novo órgão, uma parte produtiva.

Não memória morta de algum cancro. Talvez só haja, de fato, mãos de justiça natural e tempo preparatório. Talvez só haja pérolas…

Quem é capaz de desmentir a beleza de uma pérola , e negar seu tempo triste de ostracismo?

Talvez sejam pérolas que trago presas ao pescoço. Pérolas …

E até antes, estive sufocada de cordas, que julguei suicidas, porque simplesmente julguei…

E são só pérolas, no mais rico dos colares, valendo-se de anos, finalmente desenhado pelo tempo preparatório e mãos calmas de uma justiça operante que jamais julguei houvesse.

Só pérolas , do diante , até eternidade …

Ilustrações: Maria Lucia Nardy

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