O marca-passo e os sapatos

O homem andava denso, pés sem descanso, tensos, muito mais couro que o sapatoapertado.

Não, não: o sapato era confortável, tinha que ser!

Tinha sido caro demais: caso de polícia!

Onde já se vira couro custar como a vida da vaca?

Pois custava, e muito mais!

Os pés incomodavam…

O que havia de errado com os sapatos?

Talvez fosse o concreto, pisoteado tantos passos passageiros, que o marca-passo da sola cansava, ofegava em acordes rangidos, ruídos de cimento-quente-pedra. Sole cimento, sola e sapato: roídos.

E o barulho marca-passo indicando a sola cansada, casada quase cola com o emaranhado de outras tantas solas, sós, perdidas de multidão.

E o barulho marca-passo indicando a sola cansada, casada quase cola com o emaranhado de outras tantas solas, sós, perdidas de multidão.

Mas o solado tinha sido caro! Como não funcionava?!

Nem tinha vindo de terras da China! Ou tinha? Ocidente? Oriente?

Ah, essas regras desnorteadas do capital da mão-de-obra barata, sem pé nem cabeça, que vendiam a preço de sola, os pés, que, às solas-soldados, pereciam: ossos e carne viva. Às custas de um couro que nem devia ser couro, mas plástico.

Um couro avesso ao apreço pela própria carne.

Não é novidade que plástico dura mais que pés…

Ah, precisava lembrar de onde tinham vindo os sapatos, afinal, pagara caro!

Além do mais, tinha que fazer justiça ao couro da pobre vaca.

E o pé mancando quente, redimindo-se pelas patas da vaca (ou carneiro, bode, ovelha), na sola desconfortável do sapato…

Então lembrou-se de onde tinham vindo os sapatos: Itália…

Ou França… ou Portugal…?

Como assim, não lembrava dos próprios passos?!

A história sola daqueles sapatos marcava passos de um solo que nem mais sabia se concreto…

Um solo que nem mais sabia se visitado, de fato, a próprios pés ou só importado, consumido assim, como sapatos.

Itália,França ou Portugal!?? Não lembrava…

Quão distante estava de si, afinal?

Apressa, dolorida em saber a origem da sola do sapato, chegava a apertar o peito marca-passo. Um nó que ia ao teto da cabeça e fazia morada bem ali, nos pés transeuntes cansados…

Seriam de plástico?

Aquilo só podia ser efeito colateral da sola!

Talvez não pudesse ficar exposta ao Sol. Se fosse mesmo couro, não podia! Não ao Sol daquele dia: intenso…

Ou a sola estava estragada ou contaminada pela lógica do Sol de um meio dia que queimava como dia inteiro…

Como pode, meio dia um dia inteiro?

Quanto lhe custava o tempo marca-passo?

Só podia ser o efeito colateral da sola da China que se fantasiava de Itália-França-Portugal, como se fossem do mesmo Sol. Só podia! Nunca o marca-passo dos pés reclamara o peito de plástico!

Meio dia podia custar um quarto ou um dia inteiro, uma vida, a vida da vaca ou a vida de plástico, que o homem jamais daria conta, estava acostumado.

Só podia ser a droga da sola do sapato!

Marca-passo…

E em meio à balbúrdia do peito e das pessoas passageiras, cada qual de seu marca-passo e plásticos apertados, os pés, quase que em descaso à tamanha confusão do homem, suspiraram desistentes, e estancaram quando, uns passos pra lá do meio dia, avistaram a escadaria dos 20 e tantos degraus…

Os 20 e tantos degraus que o homem subia e descia, todo meio dia inteiro, de mais de 30 graus, de um sempre tão mecânico que já era nunca.

Dessa vez os pés recusaram-se a alçar sequer um degrau.

Será que todas as outras solas, na valsa dos milhares, que se atropelavam na escadaria do meio dia que contava dia inteiro eram assim como a sua?? Rebeldes?

Mais vinte degraus, meio dia, quarenta graus e sessenta segundos e o marca-passo pararia de respirar…

Então, pela primeira vez naquele meio dia de todo dia e dia inteiro, o homem olhou para baixo.

Bem ali, em frente à escada… E fez-se uma via:   para além do couro, plástico e sola, o homem viu que tinha pés, não sapatos.

Viu os pés, apesar dos sapatos. Ao pesar dos sapatos.

Ilustração: Maria Lúcia Nardy Bellicieri

Percebeu que o marca-passo batia o peito dos pés, não a sola importada, que ficou, de repente, desimportante, impotente, impertinente.

A sola era só reflexo dos pés apertados no peito, que se queriam livres: nem patas, nem couro, nem plástico.

Então o homem que ousou olhar para baixo, aos pés da escadaria de 20 e tantos degraus, naquele meio dia de concreto e plástico, degradáveis… o homem tirou os sapatos de couro nobre, que já não valiam os próprios calos, calando assim a multidão dos outros tantos sapatos passageiros.

O homem tirou os sapatos, ali, no meio do mundo do meio dia.

Um homem descalço, ao pé da escada, a mil pés do chão; nunca tão alto, nunca tão salto, nunca tão… Si

Dizem que foram os pés a alçarem o homem dali adiantes.

De antes? Nem a sola , nem o sapato…

Dizem que foram os pés, mas devem ter sido asas… Porque nunca o homem voou tão alto…

E nunca se soube, se a tal da sola do sapato tinha sido China, Índia, Itália, Brasil, ouPortugal…  Porque a história nunca fora sobre solas, pés ou sapatos.

Pena que tantos outros, no sobe-desce marca-passo da escada de 20 e tantos degraus, sob sóis e meios-dias, ainda não soubessem: sobre a sola do sapato, bem ali, no solo de concreto, todos, cada qual, escondiam pés, e asas…

Só podem ter sido as asas… E, um dia, todos saberiam…

Ilustração: Maria Lúcia Nardy Bellicieri

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