O menino levantou a mão.
Dali, daquele bem canto, bem quieto, intimidado. Mas levantou a mão… Pequena, ainda incerta de que devesse erguer-se em meio a tantas outras. Mão de só confiar em mão de mãe. Mão de menino, menino de mãe, de casa, de sempre protegido, em receio de dar-se a mãos outras.
Mas que ousadia, menino, levantar a mão!!
Mas levantou, no meio dos olhos atônitos de outros meninos, intimidados como ele, meio bichos, estranhos uns aos outros, conhecendo-se aos poucos, olhando-se, desinteressando-se, espelhando-se.
O menino levantou a mão e, aos poucos, enquanto esperava que a atenção da sala, que lhe era o mundo, voltasse-se a ele, ergueu também os olhos, num tom desafio, assumindo-se em sua dúvida, perante os outros e a si mesmo; decidindo-se mais que um menino: o menino que erguera a mão.
O professor, arrumado em seus óculos desalinhados, quase sempre protegido por capas duras e páginas de autoridade, nem percebeu a dúvida do menino. Continuou a escrever sua matemática confusa e estranha à maioria dos pequenos, que se entretinham mais do paletó sujo de giz do professor do que dos resultados e aritméticas. E o menino permaneceu com a mão levantada que, aos poucos, foi cansando, à mesma intensidade do ritmo dos cálculos frenéticos do professor, cada vez mais absorto em suas hipóteses, confirmadas ou não. Conformado, com seu pó de giz que embaçava os óculos e o fazia uma figura distante, que via o mundo sob lentes chuviscadas, que desistia de enxergar os meninos, suas mãos, suas dúvidas, vocações, seus caminhos de giz…
O professor detinha-se em seus cálculos, especialmente aquele um que não dava certo, não dava conta, não tinha razão. Apagava e rabiscava, e voltava e tentava um número a mais e outros a menos, enquanto as crianças achavam graça de seu paletó cada vez mais branco, mais giz, mais pintado das dúvidas do professor que não se acertava em contas.
E o menino ali, com a dúvida que não dava mais conta de sua toda curiosidade, a mão pesando, o braço cansado de esperar…
Mas algo ali nos olhos que se alinhavam a horizontes, sustentava a mão mais que a dúvida, sustentava a escolha de tentar uma resposta. Tinha uma dívida consigo, com os meninos iguais que ainda lhe eram estranhos e se sentavam como ele, bem daquele canto, daquele fundo, daquela sala de lousa, cálculos e pó de giz. Da sala que dali a algum tempo seria apagada, tal a conta estranha que o professor usava na lousa, insistentemente, tentando talvez resolver-se a si mesmo, suas dúvidas de capa dura. Será que o professor tinha uma dívida? Será que devia a si mesmo a liberdade da dúvida? Tal aquela do menino que se cansava, mas se sustinha na esperança de uma resposta e na ousadia de erguer-se daquele canto. Será que o professor tinha sido menino?
Ilustração: Maria Lúcia Nardy Bellicieri- Professor?
A mão do menino quem falou, cansada de esperar que o homem sério desse-lhe contada coragem.
– Professor?
Mas o homem de giz estava tão absorto em sua conta que não fechava e em sua dívida que não lhe cumpria liberdades, que a voz menina parecia um sussurro, grunhido de giz comportado na lousa.
– Professor?
Dessa vez a voz misturou-se a um risco estridente de giz, que ecoou sala toda, arranhando a paciência do professor e seu embate contra a conta que não se resolvia.
Dessa vez o professor ouviu. Virou atônito, como procurasse o número que lhe faltava ao resultado irresoluto ou à causa de sua conta em falta. Os olhos pintados de pó de giz, o paletó nevado, as mãos sujas, os olhos quase tristes, desistentes. Os alunos sentados, uns que seriam dele, outros que desacreditavam da ousadia da voz do menino, outros ainda assustados com o grito estridente do giz mal educado na lousa.
– Professor? Posso escrever na lousa?
Mas que ideia era aquela? Como o professor de capa dura e seus números ocupados cederiam espaço a uma letra de menino?
O professor não chegou a responder. Talvez tenha sido a ousadia do menino atravessando sua pouca inventividade e seus anos atônitos atrás dos óculos de giz…
O professor simplesmente sentou-se, desacreditado de sua pouca autoridade, afinal o menino desafiara-lhe a importância dos números. Sentou-se enquanto o menino dos olhos erguidos empunhou um pedaço de giz já gasto pelas contas do professor e começou a mover-se em traços na lousa séria, assistida por cálculos e probabilidades. O menino e uma calma de quem entendia o mundo a apenas um dígito. Vestiu-se linhas, retas e curvas, somas e multiplicações e, de repente, na lousa, na frente de toda a classe, havia um outro professor.Um desenho meio caricato, meio uma leitura despreparada, mas sincera, do homem sentado em seu pó de giz.
O menino de sua vocação ainda escondida, desenhara o professor:os óculos borrados de giz e um sorriso enorme. Daqueles que os cálculos solitários não suportariam.
– Professor, hoje é seu dia! Esqueceu? Isso é pra você!
Ilustração: Maria Lúcia Nardy BellicieriE sacou uma maçã clichê do bolso, todo orgulhoso. Uma maçã que tinha sido comprada pela mãe a pedido dele, lavada e lustrada, com toda gratidão, a mesma em que tinha pelo pai e pela mãe. Uma gratidão de giz que talvez um dia se apagasse, mas que, a qualquer momento, bastariam o giz e a maçã, se faria facilmente rememorada.
O professor não conseguiu responder, nem mais levantar-se. Agarrou-se à maçã como quem acerta a conta mais difícil do mundo. E olhou dali, daquele seu canto bem canto, de sua mesa organizada, aquela versão de si, feliz, vestindo óculos e sorriso, na lousa.
O professor não conseguiu responder; foram os óculos, borrando as lentes pontilhadas de giz, que correram uma lágrima resoluta de gratidão, sem dígito; uma lágrima de lavar-lhe a vocação de pó e capadura… Uma lágrima pela maçã que nem era mais maçã, era a figura de giz risonha a sorrir-lhe.
O professor se deu conta: um dia o menino também conheceria a sua vocação; e ele, o homem de giz, era parte desse resultado.
*texto apresentado na abertura da Semana de Preparação pedagógica da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Ilustração: Maria Lúcia Nardy Bellicieri