Homens de bens

Bateram à porta. Pouco mais de três da tarde. Horário impróprio para atender. Não se atende às três da tarde no mundo contemporâneo; não em sua própria casa. Não se está jamais desocupado às três. Não se está, jamais, desocupado…

Estranhamente, por algum motivo, a campainha inesperada acertara-me o número, naquele dia. Tive que atendê-la, por conta de caráter, peso na consciência ou simples educação. Tive que verificar, pela fresta da janela, quem seria a perturbar-me às três da tarde.

Um tanto receoso, espionei. O cuidado para não fazer-me visível a quem quer que fosse. A esperança de que o intruso tomasse rumo de volta e desistisse da campainha. Olhei-o por alguns segundos, sem que me percebesse. Quase meio minuto, e nenhum sinal de provável desistência. Rendi-me à paciência do homem e abri a porta da sala. Dirigi-me ao portão.

Parei a uma distância de, mais ou menos, um metro, do inoportuno. Pareceu-me inofensivo: mais de meia idade, de altura pouca, rosto vincado, tipo popular. Segurava uma bicicleta; via-se, bem velha. Tinha as roupas sujas e barba por fazer. Tipo popular. Duvido tenha reparado-me a calça cara, paga à prestação; nem tão pouco o bom gosto das cores combinadas. Duvido tenha reparado-me algo, nem mesmo a má vontade. Ao menos fez-me sentir não tão culpado pelas roupas e pela atitude neo-burguesa, sempre pronta ao distante. Sorriu prontidão, trazendo à boca, dentes de falhas e faltas :

– Boa tarde , moço. Desculpe o incômodo. Sou amolador de faca. Será que o senhor não tem nada aí pra amolar?

O homem segurava a bicicleta, tal bicho de estimação. Mais que isso: tal única estima. O olhar era vago, apesar de sorrir a vincos laterais. Quis saber porquê sorria, mas não mencionei palavra, e me fiz curioso daquela boca tão pobre, que pareceu sincera. Com certeza amolava facas; mas o sincero de que falo é o sorriso, que não pareceu, em momento algum, publicitário. O homem não tinha nada de auto-promotor. Amolava e só; era esse seu serviço, talvez sua vida. Havia amolado-me as três da tarde atípica e eu sequer precisei dar-lhe nada em troca. Ser amolado nesses dias de três da tarde em que se está sempre ocupado, talvez seja presente…

Devo ter ficado um tanto constrangido com o pedido amolador; estarrecido… Deve ter sido o contraste do sorriso desdentado com a minha camisa, impassível, de grife. Quis saber por que sorria… Que motivo amolador! Que motivo, amolador? Tentava imaginar. Devo admitir que admirei-me da peculiaridade da figura. Quase mítica, quase Barnabé; o típico miserável que se lê em contos de papel; o típico que se compra em contos de réis. Pena eu não ter facas a amolar…

Tive receio de negar-lhe moeda; ou talvez vergonha, cabível a homens de posição, posição qualquer que seja. Estima-se, nesses dias de três da tarde, vestir-se de posição: o superior homem bom. Trabalho, divirto, cristão, casado, filhos, moral, voluntário. Papel assumido de homem de bem e bens.

Quis vender ao homem amolador minha publicidade desgastada: saquei, não faca; mas três ou quatro moedas gordas, que deveriam valer eternas amolações. Dirigi-me a ele e, quando bem próximo, estendi-lhe a mão rica, retribuindo-lhe o sorriso que me parecera sincero. Talvez o meu não fosse tão digno assim: um sorriso subornando o amolador para que ele levasse consigo minhas virtudes de homem bom, superior, às três da tarde sempre ocupadas. Quem sabe ele não contasse a história das moedas ofertadas à mulher, filhos e netos? Ou comprasse-lhes caixa de bombom … Pagasse dívida de bar …

O homem olhou-me sem mais as rugas risonhas, de um estranhamento inesperado. Interrogativo, mirou as moedas :

– E as faca? Tem tudo isso de faca pra amolar? E as faca? Num amolo moeda, não, moço. Se num tem faca, desculpe incomodá.

Montou na bicicleta e seguiu caminho, deixando-me a mão estendida, a mesma que me vendia como homem bom. Sumiu, tal aparição, levando a honra das moedas e deixando amolações. Devo ter parecido patético, de sorriso amarelo e roupas combinando. Tom pastel. O pobre diabo pisara-me a humanidade; e com razão. Quem era eu afinal para desmerecer-lhe o trabalho e os pneus gastos da  bicicleta? Rasgou-me e enraiveci, cuspido em minha cristandade indulgente. Invejei-lhe integridade e postura, mesmo sem os dentes. Dignidade à vista clara, ainda que enferrujada de selim e suja de calças definhadas. Dignidade rara: aquelas minhas moedas não valiam nada.

Se ao menos eu pudesse amolar facas…

Talvez, mais uns minutos às três da tarde e o tivesse matado, tamanha a crueldade de sua negativa. Negara-me a superioridade auto-adquirida. Autoimune, eu era o homem de trocados gratuitos… Eu sim, o homem de lâminas, auto-cortante, pontas e espinhos.

Menti: tinha facas aos montes, nem aquelas moedas dariam conta. Facas e cortes, guardados, até de mim mesmo. Bastou o amolador para que as lembrasse pontiagudas e gritantes. Havia me esquecido o quanto era hábil em ferir; o quão débil como homem de bem. Ferira o amolador de facas, o homem que carregava armas sem intenção. Eu, o homem bom das moedas cortantes.

Olhei o bolso: estava completamente esfaqueado. Jamais percebera o quanto letais podiam ser as moedas. O homem que afiava facas dos outros desafiara-me com seu despretensioso sorriso de bicicleta; afinando-me, sutil, ao final das contas, bem e bens, minutos e três de tantas tardes, valores e moedas. Tive que engoli-las, uma a uma, rasgando garganta… Afiou-me de graça,  a dor de uma ira sorridente, que, talvez um dia, rodas e rodas de bicicleta mais tarde, para além das três das tardes, fosse curativa. Por enquanto, ainda era uma amolação: talvez homens de bens não fossem, tanto assim, homens de bem.

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