Dia da faxina. A casa, quinze dias deixada ao Deus quiser, já não era melhor companhia para estados de solidão. Tornara-se insuportável, tamanhas bagunça e sujeira. A cozinha em restos do anteontem, dispensa quase vazia, panos de prato já servindo a rodo de enxugar chão. A sala intransitável: papel de bala e biscoito, tigela de pipoca da noite anterior, livros espalhados sobre o tapete de pó. O quarto, por sua vez, a pior parte: multidão de pernas de calça e mangas de camisa, avessas, limpas ou usadas; pés de sapato, meias e calcinhas. Uma liquidação! Poria a casa à venda. Seria mais sensato do que contar com a faxina.
Resolveu começar pelo mais difícil, afinal, precisava de desafios; havia tornado-se em monotonias. Então, liquidaria o quarto! Espreguiçou-se em uma última tentativa de voltar atrás, entregar-se ao marasmo e deixar que as roupas espalhadas caminhassem por si próprias. Um suspiro do tipo “anda, olha o que tem pela frente…” e a vontade forjada de organizar. Na verdade, vontade até existia; o problema eram os obstáculos: impossível dar um passo sem tropeço. Mas, enfim, andara lendo sobre ordem mental, ouvindo serecotecos motivacionais… Que estava meio de ponta-cabeça: há dias, talvez quase os quinze, sem vontades, sem sentido, buscando resgatar um si mesmo desistente. Quem sabe estivesse perdido entre meias, calças, panos de prato e romances sobre tapete? Quem sabe a tal faxina não a encontrasse de volta?
Então começou, inventando um ânimo que, gostaria, espontâneo. Dobrou as roupas, uma a uma, ajeitando-as no armário; ou as atirando sobre uma montanha de vestes ininteligíveis. Nossa! Esquecera-se do casaco caro, deitado, atirado, uma cena de assassinato, perto da porta. Recolheu-o, ainda vivo, ainda em lembranças da noite de frio da semana passada, quando o vestira. Abriu novamente o armário, para guardá-lo, e foi surpreendida por avalanche de roupas incontidas. Trabalho dobrado: teve que esvaziar gavetas e prateleiras e, sem displicências, ajeitar calças, blusas e eteceteras; até chapéus, lenços e moda praia: tudo em seu devido lugar.
Que não eram as roupas, ali, a despencarem-se sobre a mulher, mas partes dela própria: pernas, braços e todo espectro de lembranças-ocasiões em que tinha sido, ousada ou usada. Partes dela própria, narrando trechos de sua vida, chamando-lhe atenção à urgência de uma reforma.
Resolveu-se por escolher quais das tais partes lhe serviam, quais momentos tinham sido justos, e os que não serviam mais. Desvencilhou-se de tanta coisa que o armário respirou aliviado, fechando portas sem estufamento; prontas para se abrirem a novas surpresas. Outros dias, outra pele, tantos outros momentos. Ensacou o que não lhe servia e botou porta afora.
Já podia ver melhor o chão, pisar com mais clareza, encostar os pés, planos, cientes de uma sua assertividade em selecionar o que servia ou não mais. Que o ultrapassado já vivera ousado: tudo, de fato, um dia tinha servido, mesmo que apenas como parâmetro para que se descobrisse o que definitivamente lhe caía bem. Tudo, um dia, tinha servido, mas ela já estava pronta para experimentar o novo, de novo.
Arrumou a cama; também não quis os mesmos lençóis. Alguém apreciaria-lhes os tons pastéis; agora seus tons deveriam ser vibrantes. E faria o mesmo às paredes, porque adorava tintas. Ah , sim! Como se esquecera? Adorava tintas! E, por anos, em infância, pensou ser esse seu grande dom. Como pudera esquecer-se?…
Então, à lista de compras: lençóis novos e cores vibrantes, em pano e parede; algumas latas de tinta, rolo e pincel. Pintaria um arco-íris no novo quarto e poria, limpos, ocupando prateleiras, seus bichos infantis e sorrisos de jovem pintora.
Também respirou alguns antigos perfumes esquecidos. Como traziam, não apenas os bons momentos, mas toda boa sensação do que a fazia feliz. Os bons momentos haviam passado e, tal lençóis, não serviam mais; mas a essência do que fazia-lhe vibrar a alma, essa devia ser a mesma. Aroma inconfundível: podiam passar anos e décadas e vidas e roupas, calças, camisas; o que fazia felicidade continuava existindo, do mesmo tamanho, vestindo o mesmo perfume.
Sorriu, voltando ao seu lugar tesouro. Será que havia se encontrado no meio da bagunça? Tão fácil assim? Usou-se de vassoura para levar longe poeiras e resquícios dos desusos constatados. Ter o piso limpo e firme; nada antepondo-se entre pés e realidade, qualquer uma que ousasse usar. Um impulso instantâneo de deitar sobre aquele chão, aquele concreto todo seu.
E deitada, espionou os segredos embaixo da cama. Quase viu-se, menina, esconde-esconde divertido; quase viu-se, procurando ovos de Páscoa e presentes de Natal. Quase riu-se do medo dos fantasmas que lhe roubavam os sono.
Dos segredos embaixo da cama, não sobrara nenhum: euforias e festejos, chocolates e canções, os perfumes. Fantasmas?
O que fizera com os segredos embaixo da cama? Agora já não tinha medo algum de trazê-los à tona, nem em quarto escuro. E se houvesse monstros fantasmas, diria a si mesma que eram apenas fantasia e os expulsaria, todos, tal roupa e lençóis que não serviam mais. Mas olhou, olhou… E não havia nada, bicho-papão ou chocolate… Nada de segredos, exceto um par de botas pretas, cano meio alto, em pé, esquecidos embaixo da cama.
Lembrou-se de um segredo: aquele par era idêntico ao modelo que usava sua primeira boneca. A boneca que calçara seus sonhos de ser adulta. Lembrou-se, menina, em seu desejo tolo, desses de esconder junto aos fantasmas, de ser exatamente como a boneca, em cabelos, trajes e bota preta de pelica. Seu segredo de querer ser bela, tão ocupada e feliz quanto o corpo plástico que ela, menina, ensinara a caminhar. Seu segredo estúpido de querer-se boneca, escondido, ali, embaixo da cama.
Alcançou o par de sapatos mais que depressa, resgatando-se a tempo de respirar sonhos novamente. E riu-se, olhando para o par de botas altas, vendo-se em toda a possibilidade de ser bela e tão feliz quanto o possível, quanto alcançável em alturas de saltar sapatos. Pôde ver-se, ela própria caminhando-se boneca, não em plástico, em carne lúcida e alma viva. Ela boneca. Mas que fim teria levado seu brinquedo preferido? Quando, afinal, deixara-o órfão, no meio caminho?
Vestiu o par de botas, buscou o melhor vestido no armário desanuviado. Nunca lhe pareceram tão sedosos os cabelos não sintéticos; os cabelos que há tempos não soltava. Quinze dias, o período em que a casa ficara esquecida em poeiras…
Vestiu-se de seus segredos mais íntimos, nem infantis nem adultos, que a alma não tem idade. Vestiu-se dela, aquela boneca esquecida no caminho, um fantasma que habitava-lhe as botas. Saiu em busca de tintas e calçadas e blusas e perfumes em suas novas cores. Saiu escrevendo o próprio mundo. Nem mais uma pergunta sem resposta. A boneca não tinha sido roubada ou jogada fora no percurso; a moça tinha se tornado boneca, tendo os passos guiados pelo par de sapatos mais Cinderela que jamais imaginara.
As mesmas… exatamente as mesmas botas com que sonhara, esperando-a, ali, zelando-lhe sonhos, embaixo da cama. E pensar que, criança, usava ter medo dos fantasmas guardados… Às vezes eles só precisam ser calçados… Um belo par de botas.