A calçada das flores. Mesma esquina enfeitada de boteco e restos de papel. Bala, guardanapos, folheto de propaganda. Buraco qualquer da cidade sujo-central, onde personagens, interpretando gente, passeavam seu cotidiano comum. Uma voltinha de coleira. Colérica, mas totalmente resguardada, amainada em goles de café ou cachaça. O tal do botequim.
A calçada das flores envasadas, dispostas sobre o concreto; criadas naturais, expostas artificialmente. Cores de vida enfeitando uma cidade quase morta, torta, desoxigenada…
Não ficavam particularmente belas, apenas grotescas, descontextualizadas. Descontentes; por assim dizer, desonestas. Flores não escolhem vida urbana. Urbanescamente mortas; qualquer colorido de placa, farol ou grafite faria suas vezes de pincelar paisagem. Urbanescamente tristes; qualquer um que as notasse não saberia seu valor; nem suas seivas e águas.
Julgariam-nas poluição visual; ou mesmo, pedintes, em seus preços explícitos colados na parte da frente dos arranjos.
Flores têm preço, pelo menos na cidade; como fabricadas, como produtos pertencentes. Mas flores compradas são semi-mortas. Jamais deveriam presentear com flores naturais; mau prenúncio. Semi-morte…
Naquela manhã as flores à venda surpreenderam; ou talvez tivesse sido idéia da esquina, ou mesmo o bar de risos satíricos. Parada na esquina, os braços cruzados e olhar vigiado a óculos escuros; parada estática, ressoando tal a semi-morte das flores e, lado a lado com elas, uma mulher humilhada .
Não se notaria, em suas roupas ou postura, sinal de ultraje. Fora o olho esquerdo acobertado, inutilmente, de lente escura. O olho esquerdo, quase saltando sobre a armação desconcertada; envergonhada por não mais servir de disfarce. O olho esquerdo gritando dor, esbofeteado, arroxeado. Provavelmente na tentativa de trazer sempre presente a lembrança de um toque rude. O olho esquerdo trazendo marcas que em uma semana tornariam-se apenas invisíveis; e esse era o maior problema. Enquanto o olho estivesse gritando, colorido, compondo o quadro das flores; enquanto gritasse, latejante, a mágoa estaria sendo expressa.
Uma mulher impressa a pontapés. Mantida ali, de saltos altos, para defender uma tentativa de dignidade. Metida ali, entre flores…
Primeiro impacto de quem a visse, seria o choque; o maldito contraste. Apesar de colorido, o olho esquerdo não combinava com orquídeas e rosas, nem mesmo as margaridas. Mas ninguém, de fato, a via; era como se estivesse semi-morta. Misturada aos arranjos artificiais de flores crescidas de terra, água e semente. Ninguém de fato a notava. Talvez ela compusesse perfeitamente, envolta em rosas, de uma aura quase morta. Um olho cego-hematoma; o outro cego, não de lente escura, escolha própria.
Por que diabos colocou-se ante natureza morta? Quis contraste ou complascência? Quis companhia, sentir-se em iguais? Seus iguais: os caules decepados. Mulher sem seiva, ceifada. Colhida. De fato, sentia-se mais pobre que as rosas. Ninguém a compraria, naquela sua aflição esquerda de olho triste acobertado. Descoberto, e ainda assim, ignorado. Um olho só; e outro para chorar por ela. Ninguém a notava.
Quem sabe, se estampasse um preço, bem no ventre, bem visível, mais que olho… Quem sabe pagariam por ela …
Dias se passariam; girassóis e margaridas murchariam ou seriam trocados por moedas. Sóis girariam e ela manteria seus óculos escuros. Os olhos trocariam de lugar: ora o direito, ora o esquerdo, coloridos, de violentas violetas. Vasos e violetas. Hematomas.
O bar e a esquina, cumprindo seus papéis: balas, guardanapos, folhetos de propaganda. A história, sempre a mesma, no cruzamento de dois faróis, folhagens de asfalto e vidas entrecortadas.
Ninguém daria conta dela, nem mesmo os ramos estáticos a seu lado, quase tocando-lhe o braço. Ela não se importava com a tal proximidade, flores não espancam mulheres. De tal razão contentava-se em passar seus dias lado a lado com elas, mesmo que lhes faltasse diálogo; mesmo as pétalas não emitindo opinião . Bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal me quer…
Ali: a mulher e suas flores inventadas.