O menino à janela encantou-se do pássaro de asas.
Não que outros não as tivessem, mas aquele havia sido o único a oferecer-lhe a liberdade, distante, tão próxima, sentada à janela.
O menino encantou-se da cor castanha que, ao Sol, quase dourada, compunha, em pinceladas de penas, o cenário de fundo-céu azul-horizonte. O mesmo azul dos olhos do menino. E o céu e os olhos do menino pareceram, ao pássaro, de igual intensidade: infinitos, irmãos.
O pássaro que voava frente à janela desenhava-se enorme e, ao mesmo tempo, tão leve, quase inconsciente de seu dom voador. Na verdade, voar não era dom de pássaro, apesar de parecer, aos olhos dos que ficam à janela… Voar não é dom. E capaz o menino nem desconfiasse, mas voar poderia ser prisão, ao pássaro das penas ensolaradas. Que a liberdade pode ser uma farsa, assim como talvez o seja, a reclusão. O menino mesmo, poderia voar dali, da janela; saltar sem asas. Talvez com o salto, criasse as próprias; ou talvez o pássaro o resgatasse da queda… Não, havia regras para voar e nem garantia de qualquer segurança.
“Por que não salta, menino? Saltar é quase o mesmo que voar!”
… ?
“Vê? Voar não é dom; assim como sentar-se de janela não é prisão.
Voar seria escolha, de queda ou fuga, ao menino e ao pássaro. Do azul de mesma intensidade: irmãos.
E algo sempre se perde, com o vôo ou a fuga; e se perde também na janela. O menino seria um covarde, voando ou não, porque já havia acostumado-se à janela. Queria voar e não podia; mas podia e, no fundo, não queria, porque sabia que voar não era seu dom. E não sabia que nem era um dom ao pássaro, mas imposição. Então apaixonara-se pelas asas do pássaro, ansiando que fossem suas. Mas talvez ele menino também cansasse de voar um dia, e as asas que desejara tanto, tornariam-se um fardo, de penas, de escolhas feridas. Talvez as asas transformassem-se em janela. E seguiria sempre, um menino azul, de vontades de céu ou olhos vivos de janela, sempre insatisfeito.
Insatisfeito como o pássaro indeciso que, voando ou não, em sua ânsia fixa pelos olhos sentados de janela do menino, queria creditar-lhes um azul mais belo do que o que pincelava o céu de trajetos de todo dia, já quase sem cor. O pássaro insatisfeito de seu azul infinito, desdenhado-se das próprias asas, só queria sentar-se à janela que o menino contava como azar. Asar: do verbo de ter asas, que não existe. Menino não voa, nem pássaro senta-se à janela.
Então o pássaro, acostumado a céus e azuis, em asas ensolaradas, quis pousar, descansar nos olhos céus do pequeno observador. Um instante de cada qual querer ser o outro, como quem compartilha um segredo indizível porque em misto de um desdém de si e um remorso instantâneo por renunciar ao que, talvez, fosse sim dom e que pensava, nunca poderia ter sido escolha: bater asas.
E no instante em que enxergou-se no azul menino, quase espelho, e se sentiu guardado de um modo especial, não entendeu porque despertara o menino.
Por que o hábito pássaro, de asas rotineiras, e até cansadas, havia encantado a atenção triste de um alguém que podia ver o mundo todo, àquela altura de janela, e sem cansar-se, sem ter que bater incessantes asas? O pássaro até tentou envaidecer-se da atenção do menino, mas não pôde: sabia que voar não era dom… Ou seria? De qualquer forma, não tinha sido escolha sua, então, por que assumí-las tão importantes? Asar , do verbo que não existe…
O pássaro conhecia muitos outros como ele, até mais belos, maiores, mais leves, mais orgulhosos por possuírem asas. O pássaro até tentou envaidecer-se, e crer que o menino apaixonara-se por suas raras asas, mas não pôde, não era justo. Era apenas mais um pássaro como todos os outros, medíocres em sua necessidade de bater asas. E ainda que outros pássaros em sua situação envaidecessem-se, ele não podia: sabia que ter asas não era dom. Azar, seu verbo de voar não existe.
O pássaro que o menino até invejou quis, por um momento, estar sentado à janela, em solidariedade aos olhos azuis de céu de menino, que o fitavam tão tristes, tão sem asas. Quis explicar-lhe que aquilo era só imposição, que era triste também ser obrigado a bater asas. Queria convencer a criança de que a liberdade era uma farsa.
Mas o pássaro, após o instante de desdenhar o céu de hábito, não quis pousar… Não, obrigado; não pôde… Por mais solidário de asas, e mais solitários, o menino e o pássaro, por mais lisonjeira a atenção despertada, o pássaro não quis ficar à janela. Não podia fazer companhia à tristeza do menino, porque entendeu que voar em sua própria solidão, era-lhe vital.
Então, só então, a liberdade foi escolha. E talvez, a imposição tenha se transformado em dom. E quem sabe o pássaro, lá na frente, quando o menino já fosse um homem e o apontasse aos filhos e netos; lá na frente, o pássaro orgulharia-se das asas e pousaria, envaidecido, na mesma janela para trocar confidências de liberdade com o menino-homem.
Voar foi uma escolha…
O pássaro poderia ter pousado e sido capturado. Ou ainda, cedo-tarde, um outro pássaro aparecesse à janela e encantasse o menino, que já teria esquecido das asas douradas e nem mais lhes quisesse a desgastada companhia. O menino esqueceria também das próprias asas de escolha e, não por vontade, mas pena das penas douradas de pássaro, já cansadas, ficaria ali, à janela, desejando a liberdade de outros pássaros, livres, como um dia o pássaro de asas ao sol fora.
O pássaro de asas ao Sol prenderia-se ao azul dos olhos meninos crendo-lhe maiores que o céu, e não mais voaria, sentaria à janela e a liberdade de não bater asas o transformaria no pássaro cansado que desaprendera de voar. E o menino estaria aprisionado a sua frágil companhia, não mais o reconhecendo de mesma beleza, e talvez, nem conseguisse libertar-se do pássaro. Sim, porque nem o menino sabia o que faria com aquelas asas…
Então o pássaro das asas ao Sol, teve medo de saltar, e resolveu voar. E a liberdade foi uma escolha solitária, apesar da solidária vontade de entender a tristeza aprisionada nos olhos do menino sem asas. Que ainda não sabia, mas podia também voar a seu modo. E as asas que nem eram um dom, foram… e foram um meio do pássaro saber que escolhia seu caminho.
O pássaro castanho voou longe, e foi ficando pequeno, pequeno… Sumiu no cenário em um céu azul distante da janela do menino que não tinha asas, mas que talvez um dia ganhasse a liberdade.
O pássaro, apesar das asas fardas, e sua crença na falta de dom, conquistava a liberdade escolhendo o que sempre fora regra: voar. E sabia, olhando o azul céu de infinito nos olhos do menino, que a criança também tinha asas. Pássaro e menino, apesar de céus e terras, seriam sempre de mesma espécie.
O pássaro voltaria, orgulho de si e do menino que, até lá, já teria aprendido a voar, que é mais que dom: é a escolha reiterada por aqueles que tem asas.
Vê, olhos ou céus: voar é mais que simplesmente ter asas…