Remissão (quando a música parou)

A música parou, inesperada, como todo fim. A música acabou. E um silêncio inexplicável tomou conta dos cantos de som; cada fresta assaltada pelo impacto daquele adeus. Adeus à melodia transitória, de falar versos, esculpir verdades que, tantas vezes, não se ousa em voz própria. Mas que se usam nas palavras-melodias de um outro.

Versos de música esculpem as verdades de um mundo todo que teve sufocado o voraz dom de se manifestar. Versos de música traduzem silêncio de tantas almas: do triste, à culpa, ao algo não dito.

Versos dizem o que se tentou esconder ou se fingiu esquecer. Até um único alguém, em inspirações que não se decifra, capaz de escutar aflições dessas almas em silêncio esconderijo, passa a transcrevê-las de som e papel, melodias, solavancos de dor ou amor e um misto.

Assim deve ter nascido a música que, de início, não se ouvia nem havia. A música surgida do silêncio das vontades resignadas, desistentes de dizer e quase ser. Nasce a música que agora se ouve porque houve um alguém a arriscar descobrí-la, correndo os riscos de desvendar silêncios. Ouve esse alguém que ouviu o espaço vazio e passou a desenhá-lo, não apenas riscos, rotas de fuga.

Porque todo silêncio guardado teve motivo: um medo emergir, de tornar. Todo silêncio grudado na garganta teve ímpetos. E, por sorte, algum dia, o silêncio vira aperto de um peito compositor, de um ouvido telepático caçador de esconderijos alheios rocos, opacos, sem som a gritar ao mundo a brutalidade de esconder-se de si, em si. Brutalizados e esquecidos, aquecidos, em garganta sem propósito. Si, do lá ré?

Por sorte, algum dia, os silêncios brutais viram aperto de um peito compositor aberto que não se pode conter. Só se pode cantar e contar. Um peito que fala, canta, compõe.

E todos cada um, carregam tesouros, aí mesmo, na garganta e no peito. Histórias e frases e fases e ditos, malditos benditos. Prontos para se fazerem existir melodia real, que se ouve, se chora ou se ri. Expressão de direito que lavra um dever humano: gritar à própria voz. O mundo tem na gana, a garganta de existir.

Todos carregam tesouros mas temem trazê-los à vida. Tremem ao pensarem-se donos da própria língua, das tremas e pontos finais, dos novos períodos e recuos parágrafos. Tremem travessão, temendo-se livres. Temem-si do lá ré fá?

Só mesmo um ou outro, aqueles que sabem ler em sons e escutam o silêncio das vozes guardadas é que detêm, direito adquirido, uma espécie de posse emprestada das aflições humanas. E têm todo o direito; afinal arriscam-se, em própria voz e tom, a rabiscar os outros em si. Fá Lá Dó?

Mas então a música parou, silenciando as tantas vozes resgatadas. A música em sua melodia tristeza que traduzia as dores de tantos do mundo e talvez via única de redenção de tantas almas que não sabiam libertar-se no peito. Ou outras tantas que nem sabiam possuir um. A música, única via que havia de gritar as vozes que não se ouvia?

A música parou, silenciando o mundo. E, de repente, os milhões silenciados ouviram-se, de fato, no gritar do peito sufoco. No silêncio tiveram que defrontar-se de si e as pedras na garganta que julgavam nem estar mais lá, incomodaram como nunca, como antes de alguém compositor  conseguir traduzir-lhe melodia, extirpando-lhes tal ferida. As pedras continuavam lá.

E cada qual, teve que gritar, expulsando um corte roco da garganta, ainda inábil, mas doendo de um tanto esperança. Nunca haviam sentido esperança. Nunca haviam sentido? E o peito ali, compositor, aberto, tal daqueles que tinham dom da melodia. O peito ali chorando récem nascido, uma dor, uma cor um si um la um ca uma do. Re mi

A música parou, e pela primeira vez, cada qual descobriu a própria voz. No próprio canto que tinha sido encolhido num canto de si qualquer. Sem dó. Re mi? Sãos

Era esse o dom dos compositores e de todos aqueles que carregavam, enfim, um peito: remissão.

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