Big Bang Bang

O menino, pequeno, indefeso, ingênuo e de uma inabilidade que insinuava tragédia, fosse tombo ou dedo queimado? Dessas tragédias pequenas, de pequenos, de pouco dano e só susto. A esse menino, sereno e curioso, foi dada, de presente, de graça? Desses grátis que a infância não entende, desses dados que são tomados; nem acusam gratidão e nem recusam? A esse menino, de joelhos-pés, de caminhar quatro patas ainda, foi entregue uma arma.

Uma dessas, de aço, ouro, níquel, bala e ferida, tiro e morte. Moeda e corte. Sorte. Roleta russa e indústria bélica americana. Ou seria chinesa? Uma dessas armas de calibre: 38 40? Ou seria de 45, de uma dessas guerras? Mas 45 já era do mesmo material que 2020, ou 1109 ou G de 5, 4, 3, 2, 1: um novo míssil ou bomba atômica. Um homem na Lua em eclipse, enquanto homens (?) em eclipse na rua. Tudo da mesma bala, de silício a carbono. Tudo da mesma tabela periódica. Vê? A história sempre a mesma? Carbono e diamantes, couro e silício, carne e pólvora.

A arma foi dada presente ao menino. Inábil ainda em polegar opositor, mas de impressão digital. Será? Será: o menino já assinava, mesmo sem nome, nem sabendo desenhar letra, uma casa, pai ou mãe? O menino, lobo, bobo, instinto, não sabia desenhar, mas assinava em digital. O menino, que nem tinha nome de batismo: nascido geração espontânea: Big Bang. Bang Bang. A arma na mão de um menino sem letra, mas que, um dia, assim se esperava, saberia atirar. Roleta russa ou Disnelândia, desses jogos de letras e outras lâminas? Sorte ou morte. O menino saberia brincar de gente grande. Soldado soldado: aço e carbono. Assim se esperava? O menino seria soldado um grande homem?

E a arma foi entregue assim, aos cuidados de mãos meninas, tão pequenas e inábeis? A pela ainda fina, até doía carregando-se de aço, ferro e pólvora. As mãos que nem conseguiam sustentar a arma ainda? Mas que orgulho daquele menino que, aos poucos, na curiosidade gelada de tudo o que é novo, usava as mãozinhas para tatear a nova forma da velha forma de mudar o mundo. O menino, tateando a guerra, descobria o seu: mundo, mudo. Será que um dia a bala faria barulho?

O menino chacoalhou a arma, tal fosse brinquedo de banda, de palhaço, de aprender a ouvir o mundo surdo. Não se fez, nem fez barulho, a arma de presente. Então, de um modo como só aqueles que engatinham sem ainda entender as regras de correr miúdo, o menino tentou de novo, com força e mais força? Mais! Mais força, menino! Mas era pequeno demais e suas mãos, as mãos de pele rasa já quase rasgavam, doloridas. Ainda que ansiosas, de uma excitação que só conhecera quando do primeiro choro, quando deixou a barriga de uma mãe, mesmo sendo geração espontânea. Big bang? Bang Bang

Mas nada? Nada do chocalho chacoalhar.

E menino foi, às voltas com um polegar opositor que nem mais fazia diferença, só se fazia digital? E as vontades de atirar, que nem eram atirar, afinal, o menino não sabia a que serviria aquela arma de presente. A quem servia?

E o menino foi, tentando aqui e acolá, a chacoalhar, niná-la, lançá-la ao alto para tentar acertar as estrelas (isso só quando teve mais braços); até alimentou-a, de sua bala preferida morango artificial, cano abaixo da guela da arma de estimação. Tentou grãos de feijão que podiam brotar? Mas por que não brotavam se eram ferro e carbono, de mesma tabela periódica? Por que a droga da arma não brotava??

Mesmo assim, não cantando ou brotando, a arma era tudo que o soldava aquele primeiro dia, de infância, de receber do pai mãe ou algum outro, quase a vida, um presente, de geração espontânea. Uma arma que não era nem de brinquedo, de brinquedo, de ninar, ou sonhar, bem ali, embaixo dos travesseiros que passavam seus dias de adulto.

E foi a vontade de carregar a arma, mesmo sem saber a que servia ou a quem; a vontade de tê-la por direto, tal o sobrenome pai ou mãe que nem sabia se se escrevia, que o fez, pouco a pouco, passo a passo, deixar os joelhos do chão e aprender a, homem, pés soldados, caminhar. Foi o peso, do chumbo, do níquel, do carbono, do silício da tabela periódica, no silêncio do tempo que se contava em moedas, que fez do menino um homem, soldado, rígido. Um homem com uma arma. Fez a arma, do menino, um homem. Ou do homem, um menino? Big Bang Bang?

Foi a vontade de carregar a arma, de mesma vontade de saber? atirar? Talvez, ainda não soubesse que vontade era aquela que tateava a alma na palma da mão? Atirar? O mesmo grito de nascer geração espontânea, de um ventre qualquer, o mesmo grito estava escondido em algum lugar da arma de não brinquedo, armada da verdade, que letal, até se fingia plástico, mas era chumbo. Era a carne que queimava, de anos e anos da mão pela fina, na palma. Napalm.

O homem chacoalhava chacoalhava mas o grito não saia, nem tocava melodia alguma. Que barulho faria aquela arma? E o menino cresceu assim? Foi brotando os feijões plantados no cano, no peito do homem crescido, de mesma tabela periódica? Foi lancetando uma vontade de atirar-se, ao mundo, chumbo-ferro, junto ao grito projétil que tentava reencontrar, na cronologia periódica que o criara geração espontânea. Uma bala ou um homem? Big big bang bang bang?

E de tanto amá-la , tanto sê-la, a arma, tantos anos, o homem querendo ouvi-la e surdo o mundo, o homem enraiveceu-se; como se faz com o que se ama e não se pode ter. Porque a arma lhe era e não, a arma que lhe fora sempre à mão, a própria mão, não chacoalhava, não contava histórias (talvez as escrevesse? mundanamente).

O homem havia lhe dado a vida, não a troco de morte: vida a troco de vida. Que dói mais porque poupa da vida a vida que podia ter sido? Dói mais, porque vida e vida são da mesma tabela periódica; e ele, soldado à arma escolhera chumbo chumbo, escolhera acolhê-la, a arma, tomando-lhe a alma. De uma letra acaso, ocaso, sorte corte morte porte. Na palma, Napalm?

Ele, soldado, havia dado-lhe a vida, lado a lado, cada calo da mão, chumbo-pólvora, chumbo-pólvora. E a arma? A arma não dizia palavra ao homem que havia sido enganado pelo menino. Sim, porque o menino, bobo, cria que um dia a arma falaria, retribuindo-lhe a espera tão presa ao peito, de reencontrar o grito mãe na garganta sem ventre. Mas a arma estava muda e não era em gratidão ao menino ou ao homem. A arma, assim como o menino, quando a recebera presente, num dia desses da tabela periódica, mãos inábeis, indefeso, ingênuo e de uma inabilidade que insinuava tragédia, a arma, à mesma medida da ingenuidade lobobobo do menino, a arma não era grata. Tinha sido só gratuita. Corte ou sorte ou morte ou? A mesma tabela periódica. Bang Boing Bang. a arma não pedira nada em troca. Talvez só a alma, lobobobo.

Então o homem, sem nem mais querer entendê-la, dessas coisas que se faz com aquilo que se ama e se desisti de ter. O homem, vingando o menino das mãos calejadas de ferro e pólvora, atirou. Puxou gatilho, como nunca havia feito, em direção ao mundo mudo. O homem que havia aprendido a usar a arma, uma arma de verdade, para tantas outras coisas de mentira: trocar pneus automóveis, parafusar quadros, guardar grãos de feijao. O homem jamais suspeitara que bastaria puxar o gatilho-arma para nascer alma de novo. Bang Bang, Big Bang?

E do tiro, que foi ouvido quilômetros mares de distância, do tiro-grito, saíram letras. Mais letras? que falavam línguas que o homem não conhecia mas que, talvez, o menino que ninava armas soubesse, já, de cor. Talvez o menino, em sua ingenuidade lobobobo, soubesse, salteado, pipocando balas, que atirando aos céus suas letras, um dia, estaria a salvo. São, salvo calos, calados tanto tempo, napalm, nas palmas das mãos ainda inaptas. vê? É tudo da mesma tabela periódica? E, mesmo assim, Big não é Bang.

O homem matou o mundo, bang bang big bang, com suas letras e a arma, que ele lobobobo, tentava chocalho. Uma arma que não brincava, nem falava, mas que aguardava, soldada aos trocadilhos de acaso ocaso, uma alma. O homem gritou o tiro que o menino, sabia, brincando ferro, aço e pólvora, de mesma tabela periódica e sem qualquer cronologia. Então o homem soube, big bang, bang bang, que o menino, um dia, aprenderia a atirar palavras. Porque assim, Big Bang Bang Bang, assim estava escrito?

Ilustrações: Maria Lucia Nardy

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