Home sweet home…
Pussy Jane e as sete Peekaretas chegaram exaustas. A perspectiva trĂĄgica de ser apanhada no trĂąnsito com suas ilustres passageiras e ter que realizar, talvez, um teste do bafĂŽmetro ou sabe-se lĂĄ assoprar ou pĂŽr a boca em mais o quĂȘ,
(afinal, a polĂcia a julgaria uma pervertida e, para a perversĂŁo, a diferença entre a boca e qualquer outro buraco Ă© sĂł semĂąntica) arrasou-a mental e fisicamente, acrescendo-lhe uma fome fora do normal…
Pussy comeu qualquer coisa (meia lata de atum ou sardinha, um resto de pipoca de um ontem, uma lata de refrigerante aberta hĂĄ alguns dias) e teve o cuidado de nem oferecer picas nenhuma Ă s mais novas companheiras de trabalho, que continuaram no saco da Kopenhagen, escondidas, cabisbaixas, exauridas, desconfiadas, deprimidas e absolutamente brochadas…
E foi entre uma ideia e outra indigestĂŁo que Pussy começou a rabiscar bobagens. Pica daqui, pica de lĂĄ e, de repente, capotou de sono, quase esquecendo-se da pica que teria pela frente, criando slogans e layouts atĂ© o fim da tarde do dia seguinte… Como se nĂŁo bastasse o pesadelo, acordou assustada madrugada adentro, com os berros das Peekaretas. NĂŁo, nĂŁo! NĂŁo eram Peekaretas, era seu cachorro…
Oh, nĂŁo!!! Picas a beliscassem! Luck havia encontrado o saco do Papai Noel: a inocente sacolinha disfarce da Kopenhagen, onde as meninas coloridas habitavam… Era sĂł o que faltava!!
As caixas estavam todas aos pedaços e Luck, tĂŁo inocente quanto a sacola, coerentemente, sem associar figuras e “falicidades”, tal o faria a um osso de brinquedo, havia agarrado a Peekareta mais razinza pelo pescoço (bem feito!!); justo aquela que havia sugerido a Pussy que arranjasse uma pica. A pobre Peeka roxa estava praticamente estrangulada e as demais, histĂ©ricas e apavoradas, gritavam por socorro.
O cachorro latia, as picas histĂ©ricas, Shirley tirando selfies #amomuitotudoisso#, o chefe pisando na sua cabeça, o teste do bafĂŽmetro, a boca e outros buracos, o flagra do arco-Ăris de peekas esconderijas, fugitivas, aflitivas… NĂŁo!!!! Aquilo sĂł podia ser um pesadelo, e era! Mas nĂŁo era…
As Peekas tinham razĂŁo: se ela tivesse a dignidade de ter pedido demissĂŁo, nada daquilo estaria acontecendo. Luck nĂŁo estaria cometendo um assassinato, ela nĂŁo teria que vender pornografia a adolescentes, a Shirley nĂŁo daria autĂłgrafos como escritora, dividindo glĂłrias literĂĄrias e ocupando a mesma prateleira de Nietzsche, o mundo estaria no lugar. Girando, mas no lugar!!!…??
Que mundo era esse!?? Realmente nem as leis da FĂsica faziam sentido…
Pussy teve Ămpetos de atirar-se pela janela. Mas o que diriam dela se encontrassem em seu apartamento post mortem uma toda coleção de Peekaretas?? Iria aparecer no Dantena: âSolteirona desvairada, apĂłs orgia, atira-se da janela de seu prĂłprio apartamentoâ. Capaz ela fosse ainda indiciada por aliciar cĂŁes ou algo do tipo! Quem deixaria seu prĂłprio cachorro Ă mercĂȘ de 7 Peekaretas e cometeria suicĂdio?? Desistiu de morrer, nĂŁo daria tal publicidade para as Peekas da tia Shirley. Preferiu pĂŽr ordem no chiqueiro:
– Luck!! Larga essa Peeka idiota!!! â e olhou com remorso para a Peekareta cor-defunto. – Desculpe, eu nĂŁo quis ofender, a culpa nĂŁo Ă© de vocĂȘs, Ă© tudo culpa daquela demente da Shirley…
E voltou para o cĂŁo assassino:
– Luck!! Olha sĂł, olha!! Biscrock de chocolate belga!!!
O bicho olhou desconfiado… Chocolate belga?? Uma pica por um chocolate belga? Humm… Fazer aquela troca colocaria-o em qualificaçÔes histĂ©ricas. Pica por chocolate, chocolate por pica… NĂŁo, nĂŁo… Precisava se vender por mais que isso. Luck jĂĄ tinha lido Freud o bastante para ceder ao trocadilho infame que Pussy Jane lhe propunha.
– TĂĄ bom, tĂĄ bom, Luck… Que tal um diamante? Uma pica por um diamante?!!
Lucky riu… Pera lĂĄ, Pussy Jane, “Diamonds are a girl’s best friend”, but for a dog?? Fuck off! Ela sĂł podia estar de sacanagem. Primeiro aquela caminha pink, agora referĂȘncias Ă Marilyn Monroe?

Pussy Jane sĂł podia estar no filme errado, ou ele estava ficando com cara de Lassie.
– Ta bom, tĂĄ bom!!! Meu reino por uma pica!!! E uma peeka viva, por favor, Luck! Solta essa maldita Peekareta!!
Ah, agora sim… Shakespeare sempre Ă© bom negĂłcio. E apesar de Pussy nĂŁo chegar aos pĂ©s da carga emocional de Ricardo III, valera a tentativa. Pussy Jane jĂĄ estava quase parecendo a Shirley um pouco mais culta em suas referĂȘncias fora de propĂłsito. TĂĄ ficando #amomuitotdisso#, Pussy? Tem certeza? Toma vergonha na cara! Uma pica por um cavalo vĂĄ lĂĄ, mas o resto…
â

âE Luck finalmente, apĂłs a parĂĄfrase de “Meu reino por um cavalo” bem colocada (diga-se de passagem) por Pussy Jane Allsteam, largou o âossoâ.
Pussy recolheu a pobre pica desmantelada. Lavou-a na pia do banheiro, colocou uns esparadrapos, secou e depositou novamente na sacolinha Kopenhagen. AtĂ© sentiu um certo remorso, uma compaixĂŁo; seus Ămpetos assassinos de pica estavam prestes a fazĂȘ-la passar para o estado #amomuitiotudoisso# e #naolargomaisoosso#. Quase envolveu a pequena grande Peeka nos braços, mas…
– Deixa de ser otĂĄria, Pussy Jane! – Pussy conseguiu ler o pensamento da Peeka que, mesmo quase em coma, continuava ĂĄcida e irĂŽnica…
Chega! Para ela bastava!
Desenrolou-se de qualquer apelo emocional que qualquer Peeka ainda pudesse causar-lhe. Foi atĂ© a garagem do prĂ©dio e as jogou todas, em sacolinha Kopenhagen, no latĂŁo de lixo. No trabalho, daria a desculpa de que tinha sido roubada, que as picas tinham desistido de virar brinquedo, que estavam com dengue, Chicungunha… Desde que aparecesse com os textos e o manual de boas maneiras, provavelmente estaria tudo ok…
Voltou ao apartamento: o bicho parecia tranquilamente satisfeito com a referĂȘncia a Shakespeare âMeu reino por um cavalo!â e jĂĄ estava instalado em sua caminha pink lendo âAssim falou Zaratustraâ. Com a paz retomada, Pussy rascunhou umas 3 ou 4 ideias, nada que julgasse digno de si e suas referĂȘncias shakespearianas. Na verdade, nem sabia porque exigia-se tanto; Shirley acharia qualquer coisa feita para si, o mĂĄximo. Peekaretas infanto-juvenis, que piada! Devia dar risada! Ou nĂŁo… Talvez devesse chorar mesmo. Chorar pra karalho!!!
Trocou algumas ideias sobre existencialismo e redução fenomenolĂłgica com Luck que, apesar de consumir bolachas caninas e enlatados Baba-cĂŁo, era consciente de seu papel transcendental enquanto cĂŁo de uma pseudo-transformadora do mundo, tinha princĂpios e era Ăłtimo em dar conselhos.
E foram séries e séries de ideais de base filosófica a escatologia pura até que ambos, exaustos, quase desmaiando de sono, acordaram atordoados com um grito alucinante vindo da vizinha:
-Ahhhhh, ahhh, seu FelĂcio!!!! Eh satanĂĄs!! Olha isso aqui na minha porta!!

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Os piores temores de Pussy materializaram-se na sua frente, e na frente do apartamento da vizinha! Peekaretas de uma figa!! Estavam todas as sete espalhadas no tapete de entrada de dona Alzira, e assustadas com o desespero das duas: Pussy Jane, a solteirona existencialista, dona Alzira a solteirona existencialista.
Pussy teve uma espĂ©cie de dejavu Ă s avessas com aquela cena… SerĂĄ que dona Alzira era ela amanhĂŁ? A porra do mundo girando sem sair do lugar! Que merda de Lei da FĂsica era aquela!!?? Dona Alzira era ela amanhĂŁ? Mas existia, de fato, o tempo? Sob as Leis da fĂsica quĂąntica seria possĂvel: ela e ela ocupando o mesmo espaço com uma reprodução descomunal de Peekas? Freud? Nietzsche? Husserl!! Socorro, vovĂł!!!
Luck, apesar de amante da Filosofia, ainda não tinha resposta para tamanhas indagaçÔes. Tentou esconder alguma Peeka, afinal seria questão de instantes até que alguém chegasse para socorrer Dona Alzira, dado o volume do escùndalo e do tempo que fazia que a vizinha não via uma peeka; mas as travessas astutas estavam dando um baile no pobre cão leitor de Shakespeare.
– Meu reino por uma Peeka!!! â dessa vez foi dona Alzira quem gritou e desmaiou violentamente. Pussy e o bicho entreolharam-se, assim como as Peekas mais instruĂdas: Uau, Dona Alzira conhecia Ricardo III!!
AtĂ© que adentrou Ă cena, seu FelĂcio, o zelador, que acabara de subir para verificar o ocorrido… Antes que qualquer Peeka abrisse o bico, Pussy tentou se explicar:
– Ai, seu FelĂcio, Ă© que eu tenho que fazer uma campanha publicitĂĄria pra amante do meu chefe que quer ser uma espĂ©cie de escritora pornĂŽ com manual de boas maneiras e me mandou engolir todas essas picas coloridas, e meu cachorro deve ter ficado indignado porque ele me conhece e sabe o que Nietzche diria se me visse de mĂŁos dadas com a mediocridade do mundo e …
Mas Seu FelĂcio nĂŁo se conteve:
– Hahaha!! Que porra Ă© essa? Eita!!! Hahahaha
As peekas, em estado de choque, temendo serem escorraçadas, linchadas ali mesmo, emendaram risos nervosos:
– HAHAHAHAHAAH HAHAHA

E a mulher desmaiada nem dando ouvidos Ă quela cena dantesca.
– Hahahha a Dona Alzira, hein?… Sabia que um dia isso ia acontecer, e ela que dizia que nunca abria a porta pra homi nenhum! Olha lĂĄ: acabou desmaiada num monte de cacete… Tinha que ser um por vez, Dona Alzira. Logo sete!!?
– HAHAHAHAHAHHAA â As Peekas suavam do mesmo frio que Pussy Jane e Luck, cĂșmplices de uma, talvez, morte sĂșbita.
– HAHAHAHAHAH â Dessa vez Pussy e Luck entraram para o coro das Peekas risonhas; e foi um momento memorĂĄvel, mĂĄgico: as Peekaretas, Pussy e Luck dividindo a mesma aflição, comparsas.
Algo acontecia: um laço de cumplicidade pela culpa compartilhada, que parecia unĂ-los para sempre, independente da concepção ou significado do tempo. Nietzsche, morto, deveria estar morrendo de rir e chorando. O momento era, de fato, tocante…
– Vou levar a muiĂ© pra tomar uma ĂĄgua, deve ter se assustado!! Olha o tamanho disso, pai do cĂ©u!!! â seu FelĂcio pegou uma das Peekaretas na mĂŁo para conferir. – Ai, ai, acho que o cachorro engoliu um teco… Deus do cĂ©u… Vai levar ele pro veterinĂĄrio, Dona Pussy; vou dar um jeito na Dona Alzira, aqui…. Chamar o seu Adolfo do 15, o mĂ©dico do coração. Agora, se o cachorro num engoliu, o pedaço do troço deve de tĂĄ em algum buraco nĂ©? Eita nĂłis, Ă© cada uma…. Brigada Dona, Pussy… E tĂł, segura aĂ esse troço, que num quero minhas expressĂ”es digitais aĂ, nĂŁo! Vai que a polĂcia aparece…Tenho famĂlia, nĂ©? Eita, Dona Alzira…
– Obrigada seu FelĂcio, muito obrigada!!
Seu FelĂcio largou a Peekareta cor-de-rosa nos braços de Pussy, que agora estava absolutamente emotiva e receptiva e, assim que o zelador adentrou ao elevador com Dona Alzira desmaiada, deu um beijo afetuoso em sua mais nova (agora, sim) amiga.
Todos suspiraram aliviados: Pussy por nĂŁo ter sido incriminada por trazer as Peekas para o prĂ©dio de famĂlia (mal sabia seu FelĂcio que as meninas inocentes nĂŁo passavam de brinquedos de linha infanto-juvenil); as Peekas por nĂŁo se indisporem com Pussy Jane, afinal elas nĂŁo queriam ter causado pĂąnico, sĂł estavam procurando a porta do apartamento de Pussy para se desculparem e saĂrem da lata do lixo; e Luck, porque finalmente poderia voltar a sua leitura filosĂłfica e dormir, afinal âSeu reino por uma boa e reconfortante noite de sonoâ era mais interessante que seu reino por qualquer Peeka… Pussy tambĂ©m pensava o mesmo.

âEntraram todos, aliviados, no apartamento 69 de Pussy que, arrependida por ter maltratado as meninas, resolveu oferecer-lhes um belo jantar (outra meia lata de atum, uns restos de pipoca , um meio sanduĂche de mortadela light, um bom e quente cafĂ©); afinal o que era uma Peeka pra quem estava trabalhando para a tia Shirley?
As Peekas alojaram-se: algumas no closet, outras na caminha cor de rosa de Luck (que bom, ele detestava aquela caminha metrossexual; seria um bom ålibi para pedir uma cama nova); outras ainda, com um pouco de insÎnia, ficaram no sofå assistindo Investigação Discovery.
E foi assim, como falou Zaratustra, do alto do improvĂĄvel e da existĂȘncia de uma verdade extra-moral, que se iniciou uma grande amizade…
