Mangas bufantes

Acordou precisando de remédios. Precisamente duas e quarenta madrugada. Duas ou quarenta madrugadas, indiferentes; que a dor era a mesma. Pregos na cabeça, mais de dois ponto quatro; dez pregos inteiros em cada lado do cérebro. Um dolorido de miolos que fazia frente a todos e qualquer sono; resistia até mesmo a pesadelo. Duas e quarenta, sem nem necessitar despertador. A cabeça doentia já havia sido despertada.

Revirou-se lado e outro no colchão vazio. Dois travesseiros por companhia, amassados tal papel anteontem, em mal estar amarfanhado, tenso e alvo; branco algodão. Precisava remédios; precisamente em horas madrugadas que, de duas e quarenta em diante, ainda existiria um dia todo. E era quase arrancar a cabeça, aquele atordoamento comprimido. Uma, duas cápsulas e se sentiria melhor?

Alcançou a gaveta do criado mudo. Remexeu de mão certeira badulaques e encontrou o vidro salvação. Duas, três e quatro cápsulas fariam mais efeito. Engoliu-as a seco, sem sentir arder a garganta, que a cabeça tomava toda atenção. E tensa, o pescoço ainda emoldurado a nervos restritivos, remexeu-se inquieta, pés e pernas aflitos, sob o branco algodão. Sobre o branco algodão? Uma leve lembrança?
Duas e quarenta e cinco; e tão escuro que o algodão perdia qualidades de aconchego. Nem fazia diferença negro ou roxo, lilás ou vermelho; não se enxergavam cores no quarto de dormir.

Duas e quarenta e tantos: só o silêncio do vidro de cápsulas batendo-lhe contra a cabeça, adormecendo-lhe um olho apenas, esperando paciente até que a mulher não lhe oferecesse mais resistência. Paciência: o vidro comprimido nem esperaria tanto.

E a cabeça da mulher de colchão vazio e dois travesseiros reverberava solidão de dor sólida, palpável. Colocou a mão na nuca, massageando feridas intocáveis; quase fendas, quase flores ou botões. A impressão de que poderia despir-se, desabotoar-se da cabeça. E se pudesse seria como nascer campos em cores, mesmo ante a escuridão cega do quarto vazio. E se pudesse? Viveria nova, noiva, flores. Mas a cama estava vazia e assim continuaria.

Amarrou-se a um travesseiro o um dos dois que lhe restavam, das duas e quarenta e tantas madrugadas. E quantas mais lhe restariam aos botões na cabeça? Quantas mais rosas perdidas e rodas de vestido branco lhe girariam vertigem e madrugadas-insônias? Quantos buquês atiraria, inventados, de costas ao destino? Quantas vítimas de si mesma teria de fazer-se até livrar-se dos botões na cabeça, da grinalda tão branca e escura quanto o lençol algodão?

Todas, tolas, tonteadas. Noites terminais. Que logo o vidro remédio teria de novo que ser acordado de seu sono leve, fajuto, já esperando fraquezas da noiva esquecida noiva. Que sua dor de branco-sujo seria permanente: noiva esquecida noiva. Vestiria sempre o desconforto bordado, não importando a roupa que a estivesse usando. Que tudo a usava, de qualquer forma. Do vidro remédio, transparente em intenções, ao branco sujo do lençol, testemunha? E bastaria o sutil perfume dos botões de flores esquecidos na cabeça, para novamente, madrugada madrugada, despertar às pressas o vidro remédio. As mãos de atabalhoar gavetas, urgentes, descontroladas, pintadas à unha, arranhadas, em cor desbotada. Se pudesse desabotoar a cabeça…

Que o vestido, quase pele própria, já a sufocava, estrangulava-lhe poros. Não havia mais por onde suores frios ou quentes; obstruída a botões de flor, a mulher das noivas novidades que não havia. O colchão e dois travesseiros, duas madrugadas e quarenta, e mais todas as demais. Ah, se pudesse desabotoar-se da cabeça?

E precisamente como previsto, pontual, tornou a retorcer-se dores. Revirou lençol encardido de escuro, alcançou o vidro paliativo da gaveta. Muito mais que duas e quarenta. Engoliu doses múltiplas de calma comprimida, a seco, e só não mastigou-se em vidros porque nem o maxilar movia-se, desativado pelos botões da cabeça. Eram os botões desabrochando, aquela toda dor. Botões-buquês, amadurecidos demais, fora do prazo de validade, murchos. Ela não suportava as noites sozinha? Não, ali, envolvida a lençol algodão cheirando de vestido e renda. E rosas tantas brotando-lhe a cabeça.

Como doía, crescer flores sem anestesia. Remédio algum funcionava. Nem duas, nem quarenta ou milhares calmarias encapsuladas trariam claridade ao quarto da madrugada. Uma quarto da madrugada e uma vida toda lançada buquês de rosas pulsantes na cabeça em botões.

Não suportava luzes, nem branco, nem o lençol algodão. Queria poder dormir fingindo-se noiva, amarrando-se em abraço de espuma e fronha, tal faria em braços maridos. Queria poder as dores de cabeça de se curar com remédio aspirina. Mas a dor eram-lhe em flores, crescendo campos, nascidas murchas, a perturbarem-lhe a cabeça.

Duas e quarenta, e todas: margaridas, rosas, lírios; brancas adoecendo sanidade, velando o fim sombrio do feliz que não houve. Nem no final,

Contos de fada não lhe haviam sido fiéis em príncipe ou carruagem. A noiva fora traída, atraída ao leito das flores, em que agora afligia-se sozinha, de lençol e dois travesseiros. Doíam-lhe ramalhetes, da nuca ao topo da cabeça, da nuvens de mangas bufantes e desenho de vida a dois. Duas e quarenta e só rabiscos do homem inventado, camuflado pelas mangas bufante do vestido branco.

Nublaram-se as fantasias e o real chovia triste, desmentindo o sonho do vestido de lençol que chovendo desistente, fazia nascer flores de solidão. Pesadelos: duas, dez, quarenta, infinitas madrugadas. O sonho vestido de branco não passava de lençol solteiro barato. Não passava? Eternamente amassada, a sensação de ser só. Não passava: nem remédio, nem vidro transparente. Jamais desabotoaria a cabeça. A dor das flores era sua única lembrança. Desvencilhar-se da noiva seria jamais saber-se.

E aquela noite, como todas as outras, as rosas escutaram a dor surda da noiva que nunca, da noiva que sempre?

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