Sujeito reto, sem jeito. Torto no caminhar. Passos largos. Pressa. O que mesmo? Ah, sim! O trabalho… Passos mais curtos. Desacelerou.
Antônio João Ninguém. Ninguém de sobrenome. Pouco culto. Nem bonito, menos ainda original. Sorte nunca ter notado. Nem poderia. Cada minuto seu, um centavo. Para quem vive de trocados, meia hora é fortuna.
O café: seu luxo. Esse seu centavo era bem saboreado. Tempo para sentar, uma espreguiçada, um cigarro, uma dúvida… Anda logo João, que o trem vem passando! O ultimo gole sempre afobado. Bituca no chão do bar. Corre, João Pedreiro! Eita!
Trem das cinco, trem das seis, trem das sete. Chegou um pouco atrasado. Não ganhou bom dia. Bom dia, ali, só até seis e quarenta. Passou disso, só um aceno e olhe lá; que atraso rendia vinte minutos de trabalho a mais aos companheiros. No mínimo? Até entendeu a hostilidade. Mas logo ficou pronto. Pá, pedra, cal. Mistura, reboca, cutuca. Tijolo, fuligem, sujeira.
Já era boa tarde! Será alguém ali tinha ponteiros? Será que já era almoço? Será que alguém ouviu? Quase impossível. Só as marteladas respondiam: Meio dia, João Marmita. Ovo, sal, couve e feijão? Ou era só mesmo arroz e bucho? Era o bucho que já tremia.
E quem se importava da fome, exceto os braços-máquinas? Os homens de gravata, muito bem alimentados, achavam defeito aqui, outro lá. Nem ouviam os estômagos desocupados dos máquinas.
Só as marteladas gritavam. As gravatas observavam. O que as gravatas estariam pensando daqueles homens nus? Ninguéns como ele, nus de caráter e vontades. Gravatas filhas de uma puta! O pensamento assustou João. De repente, era como se todos soubesse que imaginava coisas. Essas estranhezas de ter direitos e fomes. Pingou, gota fria. Não sabia se fome ou nervoso. Antônio humano? Impossível! E martelava com vigor. Pôde até sentir os braços formigarem, os mesmos que não lhe pertenciam há tempos.
Mas que diabo estava acontecendo? Como se pode estar bem e, de uma hora para outra, começar a enxergar? Martela, martela, Ninguém. Parecia que as gravatas sabiam. Porra de gravatas! Sufocavam. Vigiavam seus pensamentos. Bate e estaca. Olhos acusadores muito próximos de João e sua árdua tarefa, nunca assim tão ardida de meio dia de almoço, tão bucho e miolos, fritos. Disfarça Ninguém, disfarça. Se alguma gravata nota o bucho faminto e o miolo disparando a cabeça? Ai se alguma gravata descobre Ninguém?
Nó na garganta. O ronco de fome, o ronco da obra. Gigante voraz, devorador. Cimenta pedreiro; se sente, cimenta. Esconde. Mente. Enterra a gota de sangue suor solidão. Mistura ao cimento e constrói teu cárcere. Gota, gota, goteira. Antônio encharcado de si, de João, de um sobrenome que nunca teve. Ou tinha?
Era como se todas as dúvidas o encontrassem. E a merda do mundo, nunca tão próximo, cru que cheirava mal. Até apiedou-se daqueles martelos carne-osso; apiedou-se de si. Muito mais tinto que piedade, Ninguém era raiva. Se pudesse estripar gravatas, escarrar sobre o poder que as fazia opressoras? Gravatas sempre a olhos atentos a seus erros… Que mínimos erros cometia ele? Que culpa nascer sujo, meio bicho? Lixo. Gravatas de merda!
Martela, martela, martela. E o prego enterrado na própria cabeça. João vertigem. Mais carcaça que bucho. E nunca tanta fome.
Caçoavam dele, tinha certeza. E disso, conhecia? Tudo na sua vida eram certezas. Certeza de amanhã, e amanhã e amanhã. Repetidamente o amanhã sem qualquer perspectiva, cimentado, martelado ensurdecedor, com os próprios quase braços, ou o que fosse que segurasse-lhe os miolos apontados na cabeça, prontos a disparar. Ou era o bucho com arroz?
Martela, filho da puta! Rangiam dentes. E toda angústia destruidora era nada, sobre o sólido alicerce do concreto. Canta, assobia, sei lá. Martela. Martela, João filho da puta! Ouve o barulho? É isso que te chama! Vai querer sobrenome agora? Vai querer ter tido mãe?
Ninguém parou de martelar. Silêncio constrangedor, apesar da sinfonia estridente da construção. Maestro Ninguém largou a regência. Enxugou atesta. Azedo, salgado. Cego, invisível às gravatas, levantou. Alguns passos de suspense até a mala encardida. Digno, um herói. Marmita fria. Era o bucho, seus restos de entranha. Ninguém lhe dera permissão. Ninguém deu-se permissão. Embora não percebesse, olhavam para ele. Uns admirados, outros descontentes. Alguém entendia. Havia, mesmo sem sobrenome, um Homem, por trás da roupa suja.
E foi com a maior dignidade que empunhou sua arma: o garfo pontudo, afiado. Afinado, desconcertando sinfonia de martelo e carne máquina. Estripador de gravatas. Feroz, encheu o talher com comida fria. Era o próprio bucho que sangrava cada humilhação. João Assassino. Saboreava sua ira, Feijão e sobras anteriores, farinha e bucho barato com arroz. Mastigou a fome com o cal. Comeu bem ali, como se tivesse direitos, mastigando dentes e estômagos, quase alheio a autoridades e indignação.
Concreto, matou um tanto do orgulho das gravatas. Suas veias não eram cimentadas, não. Ninguém era gente. Tinha mãe e sobrenome. Devia ter? Naquele instante tinha: João Ninguém Nunca. E nunca foi tão corajoso? Mesmo Nunca tendo sido Ninguém?
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