Seria fácil despedir em manhã de Sol, muito fácil. Arrumaria malas, que são duas, são poucas; usam pouco teus espaços: travaria fechos, recolheria a foto do porta-retrato, mais minha que tua, que você nem sorri imagem. Abriria a porta e não jogaria de volta a cópia da chave, como diz a música do motivo de pensar em retornos. Largaria a porta escancarada, deixando livre teus futuros, tua cama de apartamento a qualquer outra pessoa. Seria fácil; deixaria elevador e hall de entrada do antigo prédio de anos e anos, com o rastro de não mais voltar.
Sairia livre, ao Sol; que o dia já me pouparia alegrias: colorido o suficiente, não me obrigaria a sorrir felicidades que não sentia. Em dia de sol, eu não precisaria fingir; já haveria ânimos suficientes pintados azul céu.
Mas hoje, justo hoje, amanheceu tempestade. Justo o dia em que te deixaria só; a porta do teu mundo escancarada para quem quisesse fazer morada. Injusto hoje, que tomara decisão e não voltaria atrás? Não como temia o músico compositor da cópia da chave. E juro, não voltaria atrás, não fosse a maldita tempestade? O dia, insatisfeito, cobraria-me, em contraste à água entristecida, uma alegria que não poderia retribuir. O dia amanhecido adoecido cobraria-me sorrisos.
E não haveria como obedecer. Sorrir molhado sob chuva tempestade seria assinar a dor que sentiria de te deixar assim: a cama vazia e a porta aberta. Sorrir molhado seria chorar os dias juntos, carregando a mala, encharcada, pesando toneladas de passado e indefinições futuras. Sorrir na chuva seria mentir a alma. E mentir, nunca soube.
E sou sincera quando digo que seria fácil despedir em dia Sol. Seria fácil, mas não é; e penso se, em algum momento, será? Se algum dia Sol ainda se fará. Que ainda falta um tanto para viver Sol. Que hoje o dia é só; tão só que me sobram liberdades.
Nem sei mais voá-las? Me sombram liberdades, mesmo às faltas do teu Sol. Liberdades em dia de chuva assombram. Que me falta teu sorriso compassivo, tua mão próxima. Teu Sol já é distante, tanto, que não te sinto? Tanto, que jamais amanhecerá novamente. Tanto, que sempre será tempestade.
E assim, sair de malas e liberdade sem volta, deixando a porta escancarada em dia de chuva, não posso.
Seria fácil despedir em manhã de Sol? Mas é culpa tua que eu não vá embora. A culpa tua por amarrar-me em liberdade que não voa, obrigada, que não quero. Obrigada, mas não quero ser livre. A culpa tua: fazer-me ficar e querer-me distante.
É que busco entender em que estrada do percurso tomamos, por caminho, diferentes sinais. Rebusco ao entender essa tua busca solitária que te faz quase dois: o homem que conheço, e o homem outro, estrangeiro, que te queres tornar. Busco encaixar um mínimo em teus novos planos, esses que não falam minha língua e me assinalam porta aberta. Ne verdade, nem precisaria chave ou cópia: tua porta já se fez escancarada há tempos, pedindo-me a passagem. Passagem tua, a teu novo mundo em que não caibo. Mas também não caibo nessa mala, nessa alma, nessa lama. A porta escancarada?
Seria fácil adeus em manhã de Sol se, pelo menos, iluminasses o apartamento com um dos teus sorrisos, nem que fosse o último, nem que fosse porta-retrato. Nem que fosse de recordação para caber na mala em que não caibo. Para que eu levasse, às toneladas, o peso da liberdade que te faz feliz. Ainda que insustentável. Ainda que cantasse, em silêncio, a música sem volta .
Seria fácil, se houvesse um único teu sorriso, livrar-te a porta, a cama e os braços. Seria fácil, se soubesse que não te restaria mágoa, exceto a que eu levaria como bagagem por um bom tempo. Um mau tempo, qualquer fosse a meteorologia. Seria fácil ir embora , em Sol ou dia de chuva, se teu sorriso me dissesse adeus e não calasse fim um, assim, sem explicação.
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