Atropelamento e fuga

Numa volta pra casa; desses feriados fim de fôlego. O carro carregado: roupa, gente, bugigangas e essenciais. Família retornava da praia. Cansaço conjunto e toda aquela história de que dias de descanso revigoravam. Tremenda mentira, jogada lixo, com restos de guaraná em lata, pela janela. Dias de descanso não impulsionavam em nada, absolutamente. Traziam apenas a idéia assustadora de recomeçar funções de segunda-feira.

No farol atarefado, a figura veloz de um menino vendedor de balas ou catador de moedas e outras latas; até de restos guaranás. No instante de farol dos céus envenenados de São Paulo, estaciona-se o menino magro, ao lado da janela motorista.

Não surpreendi, afinal, crianças davam às pencas, penduradas em janela. Era comum,  já quase estético. Que compunha com o caos do urbano inevitável. Apenas alertei, afinal, crianças de janela, há tempos deixaram de ser crianças; amadurecem de um rápido desigual, algo em que se custa a confiar.

Alertei, e subi uns tantos dedos o vidro elétrico. Nem tanto que me fizesse sentir culpado por um potencial mal estar de moleque; nem tantos que me denunciasse a repulsa. Bobagem: só minha pouca atenção dada às palavras do menino já era explicitamente distância.

Fingi que nem o vi; foi quando pediu-me favor:

“- Moço , me dá aquilo ali ?” – e apontou para o banco de trás. Virei-me, curioso; afinal, não havia moedas, arma ou nada que surtisse vontades. O que poderia ser? Talvez outra meia lata guaraná, restos de migalhas salgadas de batata? O que o menino apontava desejo?

Virei, (não pelo menino, apenas curiosidade) e vi um desinteressante brinquedo de cachorro: uma bolinha mastigada valendo nem centavos. Será que o moleque era cego? Querer um plástico gasto? Nem a cor era original… Brinquedo de bicho, que vinha impaciente da volta de praia, e curvas e altas temperaturas, e faróis… O menino queria a bola do cachorro?

E foi impulso a resposta, reflexo, instantânea. Piedade do animal:

“- É do cachorro ; a bola é do cachorro” .  – e só deu tempo de abrir farol e o carro tocar primeira marcha, levando família, bola, fim de feriado e todo o peso do olhar triste daquele moleque, que fingira nem ter reparado.

Moleque, acumulou-me toneladas à carroceria de bagagens! Não pude dar a bola, que custava poucos centavos; não pude porque era do cachorro…

Surpreendeu-me a sinceridade egoísta. O homem de sensibilidades que importara-se do animal pela sua bola preferida, ou o homem que negava dignidades infantis a moleques que não pediam dinheiro, apenas alegravam-se de brinquedo?

Surpreendeu-me o remorso quase que instantâneo que seguiu-me a negativa e a arrancada primeira marcha do carro de passeio fim-feriado. Era quase levar arrastado, o menino, preso ao pára-choque traseiro. Quase atropelar-lhe a infância que já nem existia. Atropelamento e fuga.

Não comentei com filhos ou esposa; cada qual absorvido em seus cansaços e planejamentos de semana, cantando música de radio, divertindo-se com as inquietações do cachorro dono da bola. Nem repararam o menino da janela. Tolice contar-lhes a história do brinquedo negado. Capaz nem ouvissem, aos volumes altos de som. Capaz julgassem-me estúpido em minha súbita compaixão nascida de remorso. Ou ainda, capaz julgassem-me monstro, de uma vez por todas. Como negara bola de plástico a um menino de rua? Ou talvez tivesse sido fantasma, um surto fim de feriado, episódio sem propósito.

Atormentava! Por que não fora capaz de exercer compaixão ou a tal fraternidade que se prega à desmesura em anúncio comerciante para vender, de Coca-cola a carro de família?

Mas e o cachorro, ficaria como? Sem a bola preferida? Será que fraternidade entre diferentes espécies conta alguma coisa no quesito humanidade? Difícil exercer virtudes quando se tem que ser seletivo. Então existe o bem contextual … Deve existir. E então, existe o bem?

Surpreendeu-me a culpa repentina após atropelar infâncias de menino-rua. Nem menino, já maduro, de já negado; desses que nascem às pencas em janela de carro farol. Surpreendeu-me a culpa; e talvez isso seja bem, afinal resgata-me humano…

Mas de que adianta, se a compaixão é póstuma, contemplativa? De que, se não pude socorrer a inocência vencida do menino de farol? E custaria-me centavos…

Se o cachorro pudesse interferir; na certa, teria presenteado o garoto…

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