Corpo Texto… Texto Corpo. Transição constante, encontrando, no inconstante, a consistência.
Um espaço virtual que nasce da necessidade real, mais que apenas vontade, de expressar-se e expor conteúdo autoral produzido a partir da lida reflexiva com as diferentes linguagens. Pesquisa em produção. Produção mediante pesquisa.
O intuito é também confrontar-se: com a própria imagem, argumentos e ideais. Encarar-se metáfora em movimento, um anônimo homônimo do “perder-se para reencontrar-se”: ilustrador do mundo. Artista e sujeito de expressão. Tanto mais legítimo à medida que exposto a um espelho capaz de retornar um si refletido um outro, transformado. Não é essa a alma da Pesquisa? Da Arte?
Assim, num ímpeto de legitimar-me autoral; dessas coisas que, se não tomamos conta, o cotidiano das médias e normalidades trancafia, transitar entre Corpo-Texto surge projeto de vida. Uma página em branco de existir Fernanda e não: conhecer-desconhecê-la para reconhecê-la…
Aquela que se rende e se vende à própria alma, às próprias e outras dores e espinhos, e tenta resgatá-los, condensando-os de pincel-caneta- salto-grito-palavra, antes que decantem e que se perca a infinitude que lhes transpassa. Aquela que, de qualquer instantâneo – instante, pode fazer morrer-nascer todas as coisas que, suas ou emprestadas, já suas e suas.
Ah, essa paixão obsessiva pelas tantas escritas e suas estranhas entranhas que metem ao avesso corpo, voz e calma… Acompanha-me desde o sempre: de quando lembro observar, protegida, menina de janela automóvel, as vidas tristes das pessoas de lá fora; sob viadutos e lixo, adornando sorrisos doentes e cheiro-asfalto cru, de fim de domingo. De quando lembro tentar atravessar-lhes os olhos, bem ali, da minha janela; quando lembro de tentar capturar-lhes as almas. Por um instante, conseguia.
Então podia voltar, quase incólume, Fernanda das janelas automóveis; como se nem lhes houvesse roubado o tanto da vida que escapava: pelos poros, olhos e vitrôs, nas ruas de idas e vindas dos percursos de um domingo. Mas a menina não queria apenas roubá-los: socorrê-los. Viver todos, e fazê-los nunca precisar morrer. Nem sofrer… A menina era uma alma boa.
No fundo, mesmo sem saber o que fazia, guardando os segredos daquela gente que me deixava habitar, tinha certeza de que um dia, talvez não tarde, voltariam para buscar, de mim, seus instantes. E eu, menina ou não mais (que não se pode medir em tempo essas dívidas), deveria tê-los todos, bem aqui, como meus, em suas dores ou alegrias. Deveria oferecer-lhes corpo e texto, minhas-nossas palavras. Em cura, homenagem, respeito e compaixão.
Sim, a menina era uma alma boa: sabia que guardaria com carinho, cada sonho perdido ou sorriso desencantado daquela gente que lhe dera a alma à alma. E sabia que voltariam, cedo ou tarde, para buscar a vida sob forma de cena, palavra, dança, lágrima. Tudo novo e redesenhado. E aqueles uma vez roubados, reconheceriam-se em cada letra, ponto e nó, na garganta, nas entranhas, nas estranhas maneiras que a menina encontrava de amar a todos aqueles que, doando-se em dores e amores, nem percebiam o quanto a faziam crescer. A menina era uma alma boa, um corpo-texto de dar vida a quem quisesse crer que tudo sempre se transforma e liberta.
É dessa arte, de doer doar-se, de que falo. E é sem essa que não posso existir: nem Fernanda, nem menina de alma boa. Sem essa parte não me posso permitir.
Então, só resta derramar-me, daqueles de quem emprestei cada instante capturado que me habita, entregando-me a essa espécie de sacerdócio apaixonante de criar e reinventar historias, e sê-las todas, como sêlos meus, como corpo e pre -texto de minha própria existência. É, Wilton Azevedo, sempre teve razão: artista não pode ser profissão; é sacerdócio…
Fernanda? Não mais…
Não me preciso… As almas que sabem ser dóceis são imprecisas.
Essa experiência visceral com a expressão via linguagem que, posteriormente, vim a denominar a experiência do Corpo Texto, transformou-se em tese doutoral auto-etnográfica e guia minha pesquisa em âmbito acadêmico. Creio, como pesquisadora, que o autoral deva ser reconhecido e valorizado, sobretudo no âmbito de estudos da linguagem. Então, como veículo e assunção da produção e da pesquisa, autorais, Corpo Texto transformou-se nessa plataforma, que busca incitar à discussão, experimentação, exibição de práticas, reflexões e conceitos que envolvem os processos criativos relacionados a Corpo, Texto e Performance como veículos de humanidade..
Por hora, finalizo, descobrindo que Corpo-Texto nasce como o que, talvez e acima de tudo, a menina buscasse quando roubava sonhos ou desesperanças em seus percursos de volta para casa: um pretexto para criar laços em nós. Um subtexto, hoje, expandido à missão de coligar parceiros cuja principal matéria-prima de trabalho, ou dom, seja a insaciável voracidade de exercerem-se autorais, um e de muitos…
Finalizo, sempre recomeçando: não é que a menina era, de fato, uma alma boa?