O Tempo Testamento

Lembro uma infância vagarosa, em que cabem dias de brinquedos e jogos inúmeros. Larga, pelo amplo espaço percorrido, onde anos contam nada, exceto histórias e gibis. Tudo coube nessa infância, até recordações fantasiosas. Coube gente de lembrar, gente de esquecer, gente de continuar. Quanta coisa…

E foi vendo, assim, esses jogos digitais de fazer guerra e as crianças marionetes, já contaminadas de olhar perverso, já contaminada de olhar perverso, que me dei conta que não existo mais menina. Me dei conta de que não existem mais meninas; não como deveriam ser, tais as minhas recordações de trança. Talvez nem eu tenha sido uma delas, de magnitude inocente e pulos de corda. Mas são essas que hoje prego, estranhamente… Prego em meus painéis de contar histórias de mim para mim mesma.

Talvez a infância, da minha a esta que agora observo, do ontem ao hoje, tenha ultrapassado as fábulas farsescas e voado muito além, pisando céus e infernos a números mancos, em desequilíbrio e pés impares: Amarelinha. Talvez a minha infância tenha sido mais adúltera do que essas perversas que hoje condeno: talvez a minha infância as tenha desenhado em percurso, nos quadrados abismos de saltar Amarelinha. Minha infância, talvez, tenha assaltado a inocência dessas infâncias de hoje, poupando-as de escolher céus ou infernos. Trazendo-os de mesmo quadrante, homogeneizados de chão duro e concreto das Amarelinhas. Essas infâncias virtuais…

E, de repente, da menina adulterada, hoje, pela compreensão triste de que amarelinhas são céus-infernos de mesmo valor, e antes, quase livre e de poucos moldes, nasce uma adulta emoldurada às faltas de menina. Sinto falta da menina, mesmo adulterada. Mesmo adulteradas, eu e a menina e todas as infâncias.

Então falta-me hoje, o que um dia tentei esconder, camuflado a sobreposições de cantigas. Temia, tímida, a exposição das minhas caras cores essenciais, aquelas que, vez ou outra, escapavam em vestidos verde-água, rosas-azuis e botões vermelhos. Faltam-me hoje, e me calam fundo.

No fundo, falta-me, ao corpo crescido, elos de ligação entre as memórias, os vestidos verde-água-rosas-azuis e as amarelinhas. Talvez seja a falta das cores…

Faltam conclusões e, se é delas que advém a tal satisfação, carrego frações passivas em instantâneos desolados. Isolados, lampejos de um tempo, tal saltos amarelinhas, tal desmanche de membros que, uma perna e outra, vez ou outra, acomete-me o corpo crescido.

Engraçado, não sentia tal desmanche nos tempos de menina. Nem saltando amarelinha sem pés ímpares. Era um corpo só, único. Talvez por falta de reminiscências de ontens; que, antes, tudo era hoje…

Recordação não é divertir de criança, é ressentir adulto; de sentir de novo, sofrer de velho, amortecido. Re-sentir, re-passar, re-pensar. Viver de ré. Todos, réus de nós mesmos, sob acusação de memórias de um corpo só, vazio… Corpo e só. Que corpo é pó.

Mas, afinal, quem posso culpar pela solidão, crescida assim, nos meus desenhos jogos das amarelinhas de assaltar distâncias? Pensava poder transgredir céus a infernos e o vice e versa, incólume, pulando de tranças, amarelinhas que pareciam tão eternas e confiáveis. Mas que, farsescas, desfizeram-se de cor, e suas linhas não distinguem mais céus e infernos, não indicam mais os caminhos de retorno às infâncias perdidas, as minhas e daqueles que desenhei e que fazem fruto hoje, nesse jogos de existir, menos fada, em medos de mundo e céus-infernos. É tão sólida a distância… E é ré… Todo um caminho de amarelinhas para construir uma infância que sofre, amarela e descolorida, por pular etapas e quadrantes, desavisadamente. Uma infância que não sabe mais saltar. Nem sonhar. Também não terão como lembrar. Lembra? eles não lembrarão mais…

Uma ou outra memória não seria de todo mal. Mas a mente adulta prefere uniformizá-las, colecioná-las rés, guardadas, restauradas, repulsivas. Rés pulsantes. Lembranças ímpares, aos pares, amarelinhas, jogos de guerra e toques de recolher.

Teriam sido ensaio à guerra, os toques de recolher? Se soubesse, talvez não tivesse brincado pique-esconde; mas se não tivesse brincado, não mais os lembraria e nem teria como, hoje, culpar amarelinhas de céu-inferno. Será que as amarelinhas da infância que julgo menina, tenham mesmo desenhado os desalentos adultos e a morte das novas infâncias?

Como pude ser, assim, tão infantil e saltar céus e infernos de mesmos números? Como pude inventar os jogos de guerra e os dados lançados? Como puder assaltar as infâncias de hoje se era eu a sonhá-las aos quadrantes e quadrados: 3, 2, 1? Como me faz falta, mais que infância a inocência…

E, assim, encolhida nesses descontentamentos amadurecidos, acolhendo uma e outra memória, saltando tempo em tempo, par e ímpar, céu e inferno, meio corpo e meio pó, observo esses farsescos contentamentos infantis. Vejo crianças marionetes e seus jogos de fingir ser criança, farsa, porque já não mais divertem de amarelinha, mas aprendem cedo o número de saltos ida-volta ao inferno e a desistência do céu. Não andam mais o concreto da rua suja, mas protegem-se coloridos em algum ventre que não nasce de mãe.

Qual minha razão de observá-los assim, cruelmente nus em inocências? Teimo em conciliá-los às lembranças infantis. Temo a eterna inconclusão de memórias. O que roubei de mim mesma, afinal, que não me deixa escolher tolerância quanto ao tempo e as infâncias? Tempo que se preze faz-se prazo! Memória assim o deveria; mas bastam as reflexões, rés, retroativas, para esquecer-me da validade do futuro e perder-me do que o tornará memorável, ou, ao menos tolerável. O que o tornará? Retornará, o futuro, ileso ao que tentou fazê-lo esquecido?

“Menina, o tempo volta por si só. Não revolta, não foi a infância a escrever amarelinhas, céus ou infernos, a infância só os caminha… Ontem, hoje e sempre, marionete ou marionete, tranças ou cordas, céus e infernos…”

Então, talvez não seja culpa minha, o ressuscitar das lembranças. Talvez o nascer-morrer das infâncias seja curso natural, um recurso à prostração, intrínseca ao humano, de nascer de ré como soma dos passados, de andar ré, sempre aos contras, e morrer de restos, deixando  tantas dívidas e dúvidas de tempos remotos e vindouros. Só para renascer assim, novamente ré. Retroativa e retroprojetada.

Essa a infância, e não pode culpar o tempo, que não promete nada a ninguém e deixa clara sua falta de intenção em atender expectativas a conclusões de história. O tempo só passa. Ponto passivo; e inexiste, exceto às voltas de ponteiro, circulares e repetitivas. Ponteiro passivo!

Não se pode culpar o tempo pelo que acaba ou se repete, pelo que perpetua ou não se recupera… Não se pode culpar o tempo pelas memórias. Não se pode ocupar o tempo de memórias. Não hoje, em que as infâncias são instantâneas e o passado, instantâneos de se criar pontos infinais.

Qual a moral da história, em contar o tempo? Qual a moral da História, em decantar o tempo? Transformar o céu em inferno, amarelinha em infância, infância em quadrados de ímpar e desequilíbrio? E porque me conto dessa infância que não sei ao certo, mas que me sembrava tranças? E vejo, hoje, essa outra que deveria contar igual, mas sufoca de cordas… Assombra.

Será medo da morte?

“Acorda do sonho menina!  É inferno: 1, 3, 5, 7, 9. Salta! ”

E por que não salto?

“Salta lembranças e cai no futuro, olha  a infância de lá! Amarelinha!”

Por que não vejo? Será medo da sorte?

Sorte e morte, em letras gêmeas, ímpares pelo desequilíbrio que acalentam: irreversíveis. Inconclusivas e inexplicáveis.

Talvez por isso construa histórias sobre as memórias e tente definir e distanciar infâncias, a sempre minha, ontem, e hoje, imune ao tempo que nem há, saltando memórias a pés ímpares, em céus que não se sabe se infernos, ou até quando.

Talvez por isso, medo de sorte ou medo de morte. Um jogo-letras de fazer rir e chorar, que nunca me sei, ainda hoje, como ontem, se criança ou adulto, se uma misto de dois, se céu ou inferno.

Talvez por isso observo a infância, de perto e longe, em intermináveis associações, culpas, cantigas-desculpas e testamentos. E vejo, criança e não, saltando céu a inferno,  esse adultos e seus jogos de guerra, seus bonecos paralíticos e suas marionetes. São só crianças, como eu, disfarçadas de corpo em pó. Desenhando, tal se fazia amarelinha, sorte e morte, lançando dados e jogando letras de brincar.

São só crianças, adulteradas como eu, que aprenderam a contar histórias, ouvindo histórias; e hoje as escrevem, de seu papel, como eu, em meu papel, por vezes indeciso, de retornar às lembranças que não dizem de tempo para reescrevê-las, exercício e exorcismo.

Apenas crianças, de seus papeis irreversíveis, rés e testemunhas de um tempo testamento, que não se repete: é sempre o mesmo.

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