Pinky

Em roda, mãos dadas e canções aprendidas. Crianças meninas e seus afazeres de brincar. Em bando, bandolim imaginário criando cada qual protagonista; metamorfoseadas feitiço de fada. Borboletas, saltitavam, quase esquecendo-se de que faltavam-lhes as asas. Quase borboletas, qualquer personagem lembrada, nem precisava ser voadora, qualquer personagem fantasiaria-as perfeitamente.

Em segundos passavam de fadas a mães, de filhas a rosas, de gotas de chuva a donzelas enfeitiçadas. As meninas em roda giravam a vida sem sair do lugar; rodavam de tempo, anti-horárias, despreocupando-se de segundos.

Meninas em roda nem têm conta de valor. Contam cinco, contam dez, contam grupo e mãos amarradas. Sabem de números apenas em cantigas, sabem de números até onde podem alcançá-los de dedos. Cinco, dez. Um bando de meninas em hora de recreio.

Uma delas, bem miúda, de algodões cor-de-rosa e letras estrangeiras dizendo PINKY, afastou-se do círculo aglomerado. Talvez um cansaço, ou apenas disposição para o lanche embrulhado na mala. Bisnaga e queijo cremoso, achocolatado e uma fruta, banana de insistências de mãe.

Não que a disposição para o lanche fosse maior do que a roda; mas o horário pedia estômago cheio: dez e meia em seu relógio colorido, quase de brinquedo. Tempo lúdico, sem sentidos contando horários contra ou a favor. Sem sentido eram os cíclicos circuitos numéricos de percorrer, minuto sim, minuto não. Sorte as meninas contarem só até dez; sorte rodarem de cantiga sem cronômetro. Só a pequena cor-de-rosa, PINKY, de letras vivas, usava relógio; só ela marcava tempo. Tic-tac, tic-tac; seu digital não cantava. “Passa tempo tic-tac, tic-tac passa hora. Chega logo tic-tac, tic-tac não demora…”

Seu relógio não batia tic-tac como se cantava na canção de roda. E tic-tac era tum-tum de coração do tempo? Seu relógio não teria coração?

Abocanhou a bisnaga, e um resto de queijo pingou-lhe o PINKY das letras estampadas. Bem a blusa preferida… Pensou rápido, com o dedo indicador, recolhendo o creme esbranquiçado do fundo cor-de-rosa. Levou-o fartamente à boca; gostava de queijo creme. Não gostava de bronca de mãe lavadeira. Uma mancha restou, maculando o rosa tão perfeito, cabível de roda e cantiga. A mãe que se virasse com o sabão.

Continuou em sua fome programada de dez e meia recreativa: leite com chocolate, aquele que na TV mostrava um bonequinho. Engraçado ele nunca ter-lhe dado caras, nem ouvidos. Escondida, vez ou outra, tentava segredar à figura estampada na caixinha do achocolatado, coisas de menina borboleta, coisas de criança sem asa. Mas a mãe vinha explicar que o boneco era só brincadeira de gente da televisão, mentirinha. Uma pena mesmo mentirem assim a crianças de roda. Pena mesmo terem de castrar-lhe asas com verdades tristonhas.

Por último, a banana; nem bom nem ruim; ordem da mesma mãe que desmascarou o boneco e brigava com manchas infantis. A banana  e só. Limpou mãos e migalhas, livrou-se dos papéis guardanapos, e sentou-se à beira da escada do pátio, assistindo, contemplativa, à roda incansável das meninas outras. Não que não quisesse compartilhar a brincadeira, mas obedecia ordem de relógio digital: depois das dez e meia de lancheira, nada de correrias; um descanso e só. Não que não tivesse pensado em atrever-se, mas já chatearia a mãe um bocado com a mancha na PINKY cor de rosa. Uma chateação era o bastante; um ainda estava sob controle, ainda se contava em dedo indicador. Aquietou-se, também imaginando-se princesa, fada, qualquer criatura de conto infantil que vestia-se rosa. Ajeitou-se em pernas de fazer pose, sandálias de plástico cristal, um sorriso sozinho de encanto satisfeito. Imaginou-se em portões de castelo, tapete mágico, abóbora salvadora; até corcel alado. Tudo ali, minutos descansados, na escadaria à sombra do pátio ensolarado.

A roda girava tic-tac, tic-tac, cantando a tal canção do tempo “Chega hora tic-tac, tic-tac vai-se embora…”. A roda girava ao Sol, vozes meninas e sonhos de mãos compartilhadas. Sonhos compartilhados de mães e filhas, e pais, e tempos tic-tac. E a menina da mãe de sabão, sentada na sombra, com seu relógio sem tic-tac. “Já perdi toda alegria, de fazer meu tic-tac, dia e noite, noite e dia…”. Será que seu relógio não tinha coração?

Ruim ele era um tanto, por fazê-la horas de descanso, e horas de lancheira e horas comprimidas. Ruim ele era; talvez por isso não cantasse tic-tac; talvez por isso ela tivesse que contemplar a roda, descontentar-se de tempo sentado.

Viu quando a professora aproximou-se do grupo giratório de crianças outras. Entrou, às palmas, na brincadeira, ocupando o centro da roda, cada vez mais animada. O tic-tac girando tempo e alegrias em torno da moça; os tic-tacs ofertados das meninas; doando, de suas vidas infantis, círculos que lhes pareciam infinitos. “Dia e noite, noite e dia, tic-tac, tic-tac, dia e noite, noite e dia …”.

A professora alimentando as mágicas de uma só voz, um só espaço, uma só correria. No centro do mundo infantil das pequenas borboletas. E a menina de PINKY e creme de queijo, torcendo para que a moça a resgatasse da escada de sentar-se à sombra. A moça dos sorrisos confiantes e cabelos de negros volumes lisos. Compridos, bem compridos; que quase rimavam comprimidos, mas que em nada eram parecidos. Só em letras… Esse dom das palavras de rimar realidades desentendidas, tal verdade e mentira de achocolatado de TV. Essa maldição de palavras enganosas…

Mas a moça de ensinar nem notou-a em seu imaginário desenhado na escada, seu tapete abóbora alado, seus mistos desdenhados de querer girar o tempo tic-tac na roda ensolarada. A moça nem notou suas letras cor de rosa; já envergonhadas por não ocuparem destaque, descontentes por não dançarem vivas junto a outras cores. Logo, logo as letras fugiriam-lhe da camisa; logo, logo fartariam-se dela e seus cremes de queijo à hora médica. Ela não merecia mesmo o furor de cores fortes; era fraca. Como na mentira de chocolate, sua realidade de asas não passava de coisa inventada, imaginação de escada, à sombra de pátio ensolarado. A moça das meninas de brinquedo, rodeada, nem fez por mal, nem quis ferí-la; mas pareceu-lhe linda, personagem principal do tic-tac infantil. A professora de cabelos alados nem precisava de asas, nem tapete; sorria de toda a facilidade que a menina do degrau desejava em letras cor de rosa. Felicidade… e a maldição estúpida das palavras, assemelhando-se desavisadas de seus significados discordantes. Facilidades não combinavam felicidades, não as suas difíceis regras de bem-estar: dez e meia de lanche e comprimido, outra hora qualquer de afastar-se de sóis, outras tantas digitais de minutos compromissados. As tais regras de estar bem suas dificuldades.

E mesmo assim ela fingia, forjava imagens de Aladin, lâmpada e Cinderela; imitava desejos de outras meninas; tentava fazer-se de um infantil delinqüente das preocupações. Tentava-se de tic-tac de relógios que não correm contra o tempo. Mentia; e desde sempre soube o porquê das propagandas fantasistas de achocolatado. Soube, porque seus heróis também não existiam e nenhum príncipe poderia salvá-la, nem em asas, nem em sonhos. Soube, porque seu relógio não cantava de brinquedo: “Já perdi toda alegria de fazer meu tic-tac, dia e noite, noite e dia…”. Seu relógio pulsava vida rala, sentada triste na escada às sombras de Sol. Às sobras, só.

E a menina percebeu que por mais inventasse parecer-se de roda, moça bonita e meninas mãos dadas ao descarte; por mais que forçasse, ela era única. A única em faltas; a única a quem, apesar da letra cor de rosa, faltavam cabelos. Dançariam todos, círculos e círculos, tranças, rabos de cavalo e fitilho. Laço, tiara  ou fios alados de professora. Lançariam todas, ventos livres de tic-tacs desprovidos de fim tão próximo, desdoentes, desenhando vôo livre, borboletas ou qualquer outro desejo de futuro. As rodas de cantiga girariam tempo de moça professora tornar-se mãe, de meninas tornarem-se moças e até mulheres de ensinar. E ela? E ela, a pequena cor de rosa, sem os cabelos escorrendo ombros? E a pequena de cabeça esquisitamente nua, cuidados médicos e doses a cumprir?

A menina contaria ainda dez e meia de hora do recreio, sentada, observando a roda do tempo girar as vidas, fazer as coleguinhas vestirem-se adultas e a professora tornar-se mãe. A menina contaria o tic-tac inventado a seu relógio sem coração: “Chega logo tic-tac, tic-tac vai-se embora…”.

Cansou-se de ser ali sem corpo, protegida ao esquecimento, inventada feliz de seus mecanismos de memória de fadas, coletânea de histórias de mãe, um e outro comercial achocolatado de TV. Gosto aguado, saliva misturada ao choro desmamado na garganta. Água e sal, não mar. Água e sal, não Sol; água e sal. Enroscou-se de uma lágrima que ninguém notou; e nem pôde esconder o rosto em madeixas. Não pôde e ninguém notou.

Tomou o comprimido de quase onze; as digitais de relógio, fincando-lhe o pulso, proprietárias, donas da menina cor de rosa. “Já perdi toda alegria…”. A roda convulsionando, cabelos enroscados e cansaço de pulmões, pleno cansaço de saúde corredeira. O suor que cabia frio, à menina PINKY sentada, quase sem cabeça de vergonha, quase querendo-se outra, ensurdecida de roda.

Não fora intenção de ninguém, nenhuma das outras de cabelos e medula; mas a pequena sentiu-se ainda menor. Encolheu-se da pose de fada que se queria inventar; recolheu-se dos sonhos cortantes, das rodas gigantes de cantar futuros. Não se escolheu tomada em comprimidos, não se escolheu. Recolheu figuras inventadas em final feliz; arrumou a lancheira,  secou água e sal de lágrima. Recolheu-se vergonhas carecas. Melhor nem a terem notado, melhor… De que papel julgariam-na? Qual seu conto enfeitiçado?

Dissolveu-se das vistas de roda. Melhor despistar-se, e crer que não entendia disparidades de homônimos meninas e meninas; crer que cria em tapetes de voar e leites fabricados. Crer que se criavam, inocentes, as canções de cantigas de roda. “Passa tempo tic-tac, tic-tac vai-se embora. Já perdi toda alegria. Tic-tac noite e dia. Tic-tac, tic-tac, dia e noite, noite e dia”.

A doença prematura em tons de rosa era entender, amiúde, sua história triste.

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